FREI BETTO
Natal tem que rimar com solidariedade
{dezembro de 1999}
Frei Betto é autor de livros sobre Jesus e o Natal, como Entre Todos os Homens (Ática), que conta o Evangelho em forma de romance; e A Noite em que Jesus Nasceu (Vozes), vencedor em 1998 do prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). No divisar do terceiro milênio da Era Cristã, não poderia o Almanaque Brasil de Cultura Popular fazer melhor escolha, para um papo-cabeça que fala ao coração da gente.
Como é que nasce a festa de Natal?Como a maioria das festas cristãs, o Natal é uma apropriação que a Igreja fez de antigas festas pagãs. O dia 25 de dezembro, no hemisfério norte, é o solstício do inverno, o sol começa a ficar mais forte. No Império Romano era o dia das divindades solares. João, no Evangelho, fala que Jesus é a luz do mundo. Então, fez-se a associação.
Quando é o nascimento de Jesus?
O monge Dionísio calculou a Era Cristã, pegando o ano 757 do Império Romano, e datou “ano 1″. As pesquisas dão muito claro que Jesus já estava vivo quando Herodes morreu, no ano 4 a. C. Dionísio errou. Jesus nasceu 8 a 6 anos a. C., o que significa que nós já entramos no novo milênio há uns seis anos. Jesus morreu aos 33 anos da nossa era, com 36 ou 38 anos, quase 40.
E o significado do Natal?
O Natal celebra o aniversário do menino Jesus. E vivemos uma profunda ambigüidade, porque somos todos impelidos a comemorar o Papai Noel.
Se Jesus nasceu num pasto invadido por José e Maria, para o leitor de hoje houve uma invasão de terra, certo?
Exatamente. Antes era celebrado o sol, e hoje celebram o pique de vendas no comércio. Minha proposta é erradicar a história de dar presentes. Natal: eu não dou presente, eu me dou aos outros. E aí há duas dimensões que a gente precisa resgatar.
Primeiro: em vez de comemorar em torno de uma magnífica ceia, onde se gastou muito, vamos pegar esta ceia, vamos fazer uma cesta básica, vamos levar a uma creche, asilo, hospital com portadores de HIV. Adotar alguma dessas crianças abandonadas pelas famílias, que estão em casas de recuperação. É uma coisa que faz muito bem ao coração.
E a outra proposta, é qual?
É esta: resgatar o sentido religioso. Há muitos anos não passo o Natal na igreja, embora seja frade. Eu passo com amigos que não têm nada a ver com igreja. Pegamos um poema do Manuel Bandeira, do Drummond, sobre o Natal, cantamos, lemos um texto da Bíblia, fazemos comentário. A gente precisa resgatar o sentido religioso do Natal, tanto freqüentando uma igreja, como o grupo de amigos, a família, na praia, no clube, no bairro, fazendo um momento de meditação, confraternização. Reatar laços muitas vezes esquecidos. Hoje, Natal tem que rimar com solidariedade. Com fraternura.
Você está dizendo do ponto de vista individual. É importante, mas quando é que este espírito de Natal transcende, passa para toda a sociedade?
Eu não imagino esse tipo de coisa no Brasil. Não dá para o Padre Marcelo Rossi, digamos, propor isto que estou propondo: em vez de presente, vamos nos dar. No dia seguinte ele estará cortado dos meios de comunicação. Não tenho resposta para a pergunta dentro dessa estrutura, que faz a reapropriação das festas religiosas, e de todas as religiões.
E a existência histórica de Jesus? Parece que existem poucos relatos confiáveis.
Há mais provas da existência histórica de Jesus do que de Sócrates. Mas ninguém põe em dúvida a existência de Sócrates. Temos Eusébio de Cesaréia (265-340 d.C.), que era judeu, e Tácito (55-120 d.C.), que era romano: esses historiadores citam um Cresto, crucificado sob Pilatos. Hoje, nem os exegetas judeus mais sérios põem em dúvida.
Você escreveu sobre Jesus, não?
Tenho dois livros, um deles premiado, A Noite em que Jesus Nasceu, uma imaginação, fazendo um paralelo: se Jesus nasceu num pasto invadido por José e Maria, para o leitor de hoje houve uma invasão de terra, certo? E ainda veio o rei lá com uma paulada em cima.
Então o que é que tem a ver o Natal hoje?
O Natal que a gente vai celebrar este ano é à luz do Herodes na Febem. Novamente a figura de Herodes, porque penitenciária infantil é coisa raríssima no planeta Terra.
Renascimento, Febem e também um paralelo com Herodes?
Primeiro, o renascer. Nós somos marcados por uma cultura de morte. Vivemos numa sociedade que é campeã mundial da desigualdade. A gente tem medo de criança na rua. O fato de existir criança na rua já é absurdo. Agora, adulto ter medo de criança na rua é ainda mais dramático. O instinto de sobrevivência passou a ser mais forte que o de felicidade. A ponto de a gente achar que ser feliz é unicamente poder sobreviver. Então, na verdade, estamos buscando isso, como renascer. Eu, como pessoa; e a sociedade em que eu vivo. O Natal virou um desafio político. Como fazer o Brasil renascer. Como evitar que as estruturas continuem provocando mais não-vida do que vida.
“Humano assim como ele foi só podia ser Deus mesmo”
Leonardo Boff
Quando Jesus fala em conversão, não se trata de um propósito, “eu não vou pecar mais”; é uma coisa muito mais profunda. É uma categoria de trânsito: eu vinha nesta direção, agora tenho de ir naquela. Uma sociedade desigual e a minha vida: ponho azeitona na empada de quem oprime ou de quem está oprimido?
Você disse não-vida em oposição à vida…
Vida, porque não é a fé, não é o Va-ticano, não é a renovação caris-mática, não é a Teologia da Libertação, não é o Leonardo Boff: o maior dom de Deus é a vida. Essa é a questão fundamental.
Faltou o paralelo entre o Herodes histórico e o que está aí.
A figura de Herodes é recorrente na história. Você tem o faraó, que, vendo os hebreus, escravos no Egito, se fortalecendo, 1.200 anos antes de Cristo, manda matar todos os recém-nascidos. Já o Herodes histórico sabia que o inconsciente coletivo de Israel estava ligado ao Messias, que viria para libertar o povo. Mas a matança dos meninos de Belém é apenas uma lenda teológica.
Mas Herodes não queria impedir o nascimento de Jesus?
A matança é uma criação para-digmática. O novo nasce à margem da cidade e ameaça o poder central. Esta é a lógica do Evangelho. E a força de Deus se manifesta na fraqueza de Jesus. É uma das maravilhas do inconsciente cristão, crer num Deus que é frágil. Que morre na cruz entre dois ladrões. Que convivia com prostituta, com pecador. Que não se dava com as autoridades. A epígrafe do meu livro sobre Jesus, tirei do Leonardo Boff: “Humano assim como ele foi só podia ser Deus mesmo”. A pessoa se diviniza quanto mais humana ela é. Essa coisa da manjedoura é muito paradigmática. Recuperar o presépio. Se a gente pudesse fazer renascer essa cultura de vida, levar as crianças a associar o menino do presépio aos tantos dos presépios que estão aí na rua, na Febem, condenados ao trabalho precoce. Se a gente conseguisse fazer a associação entre Herodes, que não suportava questionamentos, e toda essa questão social que de repente aflora, como nesta frase aqui, eu não conhecia (Frei Betto lê na página 2 do Almanaque de novembro a frase de Rui Barbosa): “As questões sociais não são crimes, são necessidades. Devem ser satisfeitas, não punidas.” Bonito, isso.
Da Redação
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