sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal tem que rimar com solidariedade


FREI BETTO

Natal tem que rimar com solidariedade

{dezembro de 1999}
Frei Betto é autor de livros sobre Jesus e o Natal, como Entre Todos os Homens (Ática), que conta o Evangelho em forma de romance; e A Noite em que Jesus Nasceu (Vozes), vencedor em 1998 do prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). No divisar do terceiro milênio da Era Cristã, não poderia o Almanaque Brasil de Cultura Popu­lar fazer melhor escolha, para um papo-cabeça que fala ao coração da gente.
Iolanda HuzakComo é que nasce a festa de Natal?
Como a maioria das festas cris­tãs, o Natal é uma apro­pri­a­ção que a Igreja fez de an­ti­gas festas pagãs. O dia 25 de dezembro, no he­mis­fé­rio nor­te, é o solstício do in­ver­no, o sol começa a ficar mais for­te. No Império Romano era o dia das divindades so­la­res. João, no Evangelho, fala que Je­sus é a luz do mundo. Então, fez-se a as­so­ci­a­ção.

Quando é o nascimento de Jesus?
O monge Dionísio calculou a Era Cris­tã, pegando o ano 757 do Im­pé­rio Ro­ma­no, e datou “ano 1″. As pes­qui­sas dão muito cla­ro que Jesus já es­ta­va vivo quan­do Herodes mor­reu, no ano 4 a. C. Dionísio errou. Je­sus nasceu 8 a 6 anos a. C., o que sig­ni­fi­ca que nós já en­tra­mos no novo mi­lê­nio há uns seis anos. Je­sus morreu aos 33 anos da nossa era, com 36 ou 38 anos, quase 40.

E o significado do Natal?
O Natal celebra o aniversário do me­ni­no Jesus. E vivemos uma profunda ambigüidade, porque somos todos im­pe­li­dos a co­me­mo­rar o Papai Noel.

Reprodução/AB
Se Jesus nasceu num pasto invadido por José e Maria, para o leitor de hoje houve uma invasão de terra, certo?
Reprodução/AB
Então a festa era pagã e voltou a ser?
Exatamente. Antes era celebrado o sol, e hoje celebram o pi­que de ven­das no comércio. Minha proposta é erradicar a his­tó­ria de dar pre­sen­tes. Natal: eu não dou presente, eu me dou aos ou­tros. E aí há duas dimensões que a gente pre­ci­sa res­ga­tar.
Primeiro: em vez de comemorar em torno de uma mag­ní­fi­ca ceia, onde se gastou muito, vamos pe­gar esta ceia, vamos fazer uma cesta básica, vamos levar a uma creche, asilo, hos­pi­tal com por­ta­do­res de HIV. Ado­tar al­gu­ma des­sas cri­an­ças aban­do­na­das pe­las fa­mí­li­as, que estão em ca­sas de re­cu­pe­ra­ção. É uma coisa que faz muito bem ao co­ra­ção.

E a outra proposta, é qual?
É esta: resgatar o sentido religioso. Há mui­tos anos não pas­so o Natal na igre­ja, em­bo­ra seja frade. Eu passo com ami­gos que não têm nada a ver com igre­ja. Pe­ga­mos um po­e­ma do Ma­nu­el Ban­dei­ra, do Drummond, sobre o Na­tal, can­ta­mos, le­mos um texto da Bí­blia, fa­ze­mos co­men­tá­rio. A gente pre­ci­sa res­ga­tar o sentido re­li­gi­o­so do Natal, tan­to fre­qüen­tan­do uma igre­ja, como o gru­po de ami­gos, a fa­mí­lia, na praia, no clube, no bair­ro, fa­zen­do um mo­men­to de me­di­ta­ção, con­fra­ter­ni­za­ção. Reatar la­ços muitas vezes esquecidos. Hoje, Natal tem que ri­mar com so­li­da­ri­e­da­de. Com fraternura.

Ilustração Elifas AndreatoVocê está dizendo do ponto de vista individual. É importante, mas quando é que este espírito de Natal transcende, passa para toda a sociedade?
Eu não imagino esse tipo de coisa no Bra­sil. Não dá para o Padre Mar­ce­lo Rossi, di­ga­mos, pro­por isto que es­tou pro­pon­do: em vez de pre­sen­te, vamos nos dar. No dia se­guin­te ele estará cor­ta­do dos meios de co­mu­ni­ca­ção. Não te­nho res­pos­ta para a per­gun­ta dentro des­sa es­tru­tu­ra, que faz a reapropriação das fes­tas re­li­gi­o­sas, e de to­das as re­li­gi­ões.

E a existência histórica de Jesus? Parece que existem poucos relatos confiáveis.
Há mais provas da exis­tên­cia his­tó­ri­ca de Jesus do que de Sócrates. Mas nin­guém põe em dúvida a exis­tên­cia de Sócrates. Temos Eusébio de Cesaréia (265-340 d.C.), que era ju­deu, e Tácito (55-120 d.C.), que era ro­ma­no: es­ses his­to­ri­a­do­res ci­tam um Cresto, cru­ci­fi­ca­do sob Pilatos. Hoje, nem os exegetas ju­deus mais sé­ri­os põem em dúvida.

Você escreveu sobre Jesus, não?
Tenho dois livros, um deles pre­mi­a­do, A Noite em que Je­sus Nasceu, uma ima­gi­na­ção, fazendo um pa­ra­le­lo: se Je­sus nas­ceu num pasto in­va­di­do por José e Maria, para o lei­tor de hoje houve uma invasão de ter­ra, certo? E ainda veio o rei lá com uma pau­la­da em cima.

Ilustração Elifas AndreatoEntão o que é que tem a ver o Natal hoje?
O Natal que a gente vai celebrar este ano é à luz do Herodes na Febem. Novamente a figura de Herodes, por­que pe­ni­ten­ci­á­ria in­fan­til é coisa raríssima no pla­ne­ta Terra.

Renascimento, Febem e também um paralelo com Herodes?
Primeiro, o renascer. Nós somos mar­ca­dos por uma cultura de mor­te. Vi­ve­mos numa sociedade que é cam­peã mun­di­al da desigualdade. A gente tem medo de criança na rua. O fato de existir criança na rua já é ab­sur­do. Agora, adulto ter medo de cri­an­ça na rua é ainda mais dra­má­ti­co. O ins­tin­to de so­bre­vi­vên­cia pas­sou a ser mais for­te que o de fe­li­ci­da­de. A pon­to de a gen­te achar que ser fe­liz é unicamente poder so­bre­vi­ver. Então, na verdade, estamos bus­can­do isso, como re­nas­cer. Eu, como pes­soa; e a so­ci­e­da­de em que eu vivo. O Natal vi­rou um de­sa­fio po­lí­ti­co. Como fa­zer o Brasil re­nas­cer. Como evitar que as es­tru­tu­ras con­ti­nu­em pro­vo­can­do mais não-vida do que vida.

Reprodução/AB
“Humano assim como ele foi só podia ser Deus mesmo”

Leonardo Boff
Reprodução/AB
Mas e o Natal com isso? E Jesus?
Quando Jesus fala em con­ver­são, não se tra­ta de um pro­pó­si­to, “eu não vou pe­car mais”; é uma coisa muito mais profunda. É uma ca­te­go­ria de trân­si­to: eu vinha nesta di­re­ção, ago­ra te­nho de ir naquela. Uma so­ci­e­da­de de­si­gual e a mi­nha vida: po­nho azei­to­na na em­pa­da de quem opri­me ou de quem está opri­mi­do?

Você disse não-vida em oposição à vida…
Vida, porque não é a fé, não é o Va-ticano, não é a re­no­va­ção ca­ris-mática, não é a Te­o­lo­gia da Li­ber­ta­ção, não é o Leo­nar­do Boff: o maior dom de Deus é a vida. Essa é a ques­tão fundamental.

Faltou o paralelo entre o Herodes histórico e o que está aí.
A figura de Herodes é recorrente na his­tó­ria. Você tem o faraó, que, ven­do os hebreus, es­cra­vos no Egito, se fortalecendo, 1.200 anos antes de Cris­to, manda matar todos os re­cém-nas­ci­dos. Já o Herodes histórico sa­bia que o in­cons­ci­en­te co­le­ti­vo de Is­ra­el estava li­ga­do ao Mes­si­as, que vi­ria para li­ber­tar o povo. Mas a ma­tan­ça dos me­ni­nos de Belém é ape­nas uma len­da te­o­ló­gi­ca.

A Noite em que Jesus Nasceu, Livro Infantil de Frei Beto, premiado pela APCA em 1998
A Noite em que Jesus Nasceu, Livro Infantil de Frei Beto, premiado pela APCA em 1998
Mas Herodes não queria impedir o nascimento de Jesus?
A matança é uma criação para-digmática. O novo nasce à mar­gem da cidade e ame­a­ça o po­der cen­tral. Esta é a ló­gi­ca do Evan­ge­lho. E a for­ça de Deus se ma­ni­fes­ta na fra­que­za de Je­sus. É uma das ma­ra­vi­lhas do in­cons­ci­en­te cristão, crer num Deus que é frá­gil. Que mor­re na cruz en­tre dois la­drões. Que con­vi­via com pros­ti­tu­ta, com pe­ca­dor. Que não se dava com as au­to­ri­da­des. A epígrafe do meu li­vro sobre Je­sus, ti­rei do Leo­nar­do Boff:  “Humano assim como ele foi só po­dia ser Deus mes­mo”. A pes­soa se diviniza quan­to mais hu­ma­na ela é. Essa coi­sa da man­je­dou­ra é muito paradigmática. Re­cu­pe­rar o pre­sé­pio. Se a gente pu­des­se fazer renascer essa cul­tu­ra de vida, le­var as cri­an­ças a as­so­ci­ar o me­ni­no do pre­sé­pio aos tan­tos dos pre­sé­pi­os que es­tão aí na rua, na Febem, con­de­na­dos ao tra­ba­lho pre­co­ce. Se a gente con­se­guis­se fazer a as­so­ci­a­ção entre Herodes, que não suportava questionamentos, e toda essa ques­tão social que de repente aflora, como nes­ta fra­se aqui, eu não co­nhe­cia (Frei Betto lê na pá­gi­na 2 do Almanaque de no­vem­bro a fra­se de Rui Bar­bo­sa): “As ques­tões so­ci­ais não são cri­mes, são ne­ces­si­da­des. De­vem ser sa­tis­fei­tas, não pu­ni­das.” Bo­ni­to, isso.

Da Redação

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