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sábado, 21 de janeiro de 2017

A ORIGEM DA PALAVRA "BAITOLA"

Na linguagem coloquial, baitola, 
viado e gay têm o mesmo significado: 
trata-se de um homossexual.
velha locomotiva
A palavra "baitola" surgiu no Ceará, 
nas primeiras décadas do século 20. 
     Vamos à "história".
     Por volta de 1913, chegou ao Ceará o inglês de nome Francis Reginald Hull, o conhecido Mr. Hull (pronuncie-se mister ráu), que deu o nome a uma famosa avenida na cidade de Fortaleza-CE.
Francis Reginald Hullf
     Mr Hull fora designado superintendente de uma Rede Ferroviária no Ceará e passou, em muitas situações, a fiscalizar algumas obras de construção e reparo na própria Ferrovia.
    Mr Hull era homossexual assumido. Quando ia pronunciar a palavra "bitola", que significa a distância entre dois trilhos, pronunciava "baitola" como se pronuncia na língua inglesa.
    Quando ele se aproximava de onde estavam os trabalhadores, estes, que não gostavam do modo como eram tratados pelo chefe, diziam: "Lá vem o baitola, lá vem o baitola".
    A partir daí passou-se a associar a palavra baitola ao homossexualismo.

Baitolagem também é cultura!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

LAMPIÃO - Cangaceiro: 1898 – 1938

LAMPIÃO

Cangaceiro: 1898 – 1938

REINO DE FAZER INVEJA



Depois de ouvir missa na igreja de Glória, cidade da Bahia nos limites com Pernambuco e Alagoas, o capitão Virgulino Ferreira da Silva, cabeça descoberta, sem arma de fogo, cai de joelhos, benze- se e em passo manco, sequela de uma bala, vai cumprimentar o padre Emílio Ferreira.
Calmo, sorriso maroto, o sacerdote acolhe-o um tanto alvoroçado.
“Estou mesmo diante do Rei do Nordeste?”
“Para servir Vossa Reverência.”
O padre havia recebido pouco antes, de um caixeiro-viajante, um mapa do Brasil, de um metro quadrado. Tem a ideia de desdobrá-lo sobre a mesa.
 “Pois então trace aqui o seu reino.”
         Munido de um lápis, capitão Virgu- lino, dito Lampião (havia adaptado um fuzil, para disparar mais rápido, e o cano avermelhava na escuridão) firma o olho bom, que era o esquerdo (o outro parecia um coágulo estagnado no centro de uma mancha branca, vazado que fora por um espinho) e inicia o traçado. Usado óculos brancos, sem aro, que pareciam aderir ao rosto comprido, ovalado.
De Mossoró, a mão desce para Conceição do Piancó, no Rio Grande do Norte, atinge Poção e Pesqueira, em Pernambuco, atravessa Alagoas, invade Porto da Folha e Capela, em Sergipe, e dali, via Itapicuru, entra na Bahia, rumo centro-oeste, via Riachão do Jacuípe e Morro do Chapéu, de onde se aventurou a Barra de Estiva e Rio de Contas. Flecha para cima, até Remanso, cruza a caatinga pernambucana, passa por Juazeiro do Norte, onde pontificava seu devoto Padre Cicero, e Caririaçu, no Ceará. Depois de Morada Nova, completa o circuito em Mossoró.
O reino compreendia sete Estados brasileiros. Ao todo, 273 mil km2. O padre admira-se:
“Territorialmente, seu reino faria inveja a muita cabeça coroada da Europa.”
O Rei do Cangaço arreganha os dentes, vaidoso.


SENHOR ABSOLUTO

O historiador Davis Ribeiro Sena transcreve em português correto, no livro As Revoltas Tenentistas que Abalaram o Brasil, trecho de um bilhete de Lampião ao governador de Pernambuco, Sérgio Loreto:

“(...) Se o senhor estiver de acordo, devemos dividir os nossos territórios. Eu, que sou o capitão Virgulino Ferreira, governador do sertão, fico governando esta zona de cá, por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa de Rio Branco até a pancada da água do mar.

Capitão Virgulino Ferreira, governador do sertão (...)”

Cegos cantavam nas feiras, de pires estendido para a esmola; a literatura de cordel registrava:

Sou senhor absoluto 
De todo esse sertão. 
Aqui quem quiser passar 
Precisa apresentar Licença do Capitão

Mais alguns anos e Getúlio Vargas amarraria o cavalo no Obelisco, perto do Palácio Monroe (demolido nos anos de 1970, sob protestos), final da Av. Rio Branco, no Rio de Janeiro. A ditadura custou a desmantelar um dos vários focos de rebeldia armada contra o abandono dos sertões e injustiça de senhores de baraço e cutelo. Lampião reinou cerca de vinte anos com sua tropa a princípio escassa, depois de 30 a 50 cangaceiros, durante os anos 20 e 30 do século 20.




PETIMETRE, DA CABEÇA AOS PÉS

Se o sertanejo era, “antes de tudo, um forte” (Lampião tinha 1,79m de altura, carnes enxutas), como disse Euclides da Cunha em Os Sertões, um de seus produtos, o cangaceiro, era acima de tudo um vaidoso. Vingou-se do ostracismo ao criar para si uma indumentária no mínimo extravagante, mas que muito atiçou o imaginário popular e lhe rendeu temerosa admiração. Socialmente excluído, espezinhado, escravo de novos senhores feudais, instalou mostruário em que exibir- se, ancho e exultante.


 Ao contrário dos bandidos lendários de países ricos, que usavam roupas simples de cores es- maecidas, ele se pavo- neava nas cores fortes, nas jóias de ouro e prata, adornos florais, tecidos finos. Queria mostrar-se morgado e poderoso. Consta que antes de se lançar no cangaço, costurava ele próprio suas roupas, com ademanes de estilista, e sabia bordar bem à maquina.

Dadá, mulher de Corisco (Cristino Gomes da Silva Cleto), fixou em definitivo a moda desses outlaws nordestinos. Cabe-me aqui não a honra, mas apenas o ensejo de vos reapresentar a figura vulgarizada pelo cinema, folclore e literatura de cordel. Eis o cangaceiro típico:

Chapelão de couro em estilo napoleônico, de aba dianteira larga, dobrada e alevantada, nela bordadas em couro branco três estrelas de oito pontas que semelhavam sóis, de mistura com moedas de ouro e prata.

No pescoço, lenço comprido de seda inglesa ou tafetá francês, vermelho e verde, ou axadrezado. As pontas eram atadas com anéis ou moedas valiosas sobre a camisa cáqui ou azul. A de Lampião era vermelha ou listrada, com botões de ouro.

Calças de cintura alta, em geral curtas, porque a elas seguiam- se perneiras de couro enfeitadas com ilhoses presos por fivelas. Sapatões de couro ou alpercatas de couro cru.

Cartucheiras trespassadas para 120 balas. Fuzil Mauser modelo 1918, bandoleiras enfeitadas com moedas de prata e ilhoses brancos. Duas cintas laterais para sustentar os cantis. Anéis graúdos em quase todos os dedos (Lampião sempre trazia um, regalo de algum coronel catingueiro, que assim pagava o estipêndio da trégua). Acrescentem as luvas (as de Lampião eram bordadas), os cabelos compridos — e terão o tipo. Dadá, com o seu faro de modista digna da maison Dior ou griffe Hermès, muito contribuiu para essa indumentária, com enfeites, adornos e bordados, entre os quais as estrelas nos chapéus e os motivos florais. A revista Time-Life alinhou Maria Bonita entre as mulheres da moda. Até os cães viviam nos trinques: Dourado, o de Lampião, trazia coleira de ouro e prata, o danado. Meninos cantavam nas póvoas sertanejas:

Minha mãe me dê dinheiro
Pra comprar um cinturão
Pra botar uma cartucheira
Pra brigar pra Lampião

Conforme observou Constanza Pascolato em entrevista a Bia Lemos, Lampião, Maria Bonita e outros misturavam “riqueza, extravagância e barbárie”. Lançaram a moda do “banditismo de ostentação” e este encontrou terreno fértil. Viceja no Brasil.




CANGAÇO, ONTEM E HOJE

Cangaço é mais do que o bagaço da uva pisada, como está em Moraes, 1831. É o aumentativo de canga, que significa jugo, domínio, opressão. Também é um dispositivo de madeira a que são jungidos bois para transporte. De acordo com Beaurepaire Rohan, 1889, quer dizer o conjunto de armas portadas por um valentão, ou, ainda, trastes de gente humilde, segundo Domingos Vieira, do Porto, que remonta a 1872. Algo a ver, portanto, com pobreza e escravidão.
Nas suas pesquisas semânticas, o folclorista Luís da Câmara Cascudo afirma que, para os sertanejos do Nordeste brasileiro, cangaço é a matalotagem do cangaceiro, “inseparável e característica”, ou seja: roupas, suprimentos de boca (em geral, alimentos secos), bornais, munições, armas, mezinhas consagradas pelo vulgo. Algo a ver com bandido, assaltante a mão armada, pistoleiro.
No Brasil da República Velha, anota Cascudo no livro Flor de Romances Trágicos, a atividade do cangaço valia a pena. Ele próprio registra estes versos:
























Há quatro coisas no mundo 
Que alegram um cabra macho: 

Dinheiro e moça bonita, 
Cavalo estradeiro baixo, 
Clavinote e cartucheira 
Pra quem anda no cangaço

Ninguém nasce para ser cangaceiro, é claro. Mas quem tem a desventura de vir à luz nos sertões há de sofrer fatalmente os efeitos do meio. Além da terra adusta e semiárida, da vegetação raquítica e espinhenta, das pedras, dos rios e córregos temporários, das secas prolongadas que matam rebanhos, da água escassa, às vezes quase lama, o sertanejo pobre perde o feijão, o porco, a vaca e os legumes, passa fome. Uns migram; outros ficam à espera da chuva redentora.

É natural que, em ambiência geográfica hostil, alguém perca a paciência. E, para aperrear ainda mais, há os donos da terra, a polícia a seu serviço, a justiça pronta a despachar em seu favor. Projetos de irrigação tardam; açudes com dinheiro público só para os poderosos, verbas desaparecem no ralo da corrupção. É uma verdade histórica. A civilização começou pelo litoral, gostou do mar e ali plantou-se com os seus luxos. De vez em quando o sertão ameaçava virar mar, como aconteceu via Antônio Conselheiro e seu bando esfarrapado de penitentes. O mar é que jamais quis ser sertão.

Historiadores, romancistas e sociólogos se têm debruçado sobre o aspecto psicossocial do banditismo. Decerto a influência do meio ainda pesa, e muito, mas naqueles tempos bicudos ser ladrão e saqueador dava lucro, apesar das forças volantes das polícias estaduais, atiçadas pelos coronéis. Não tanto quanto hoje, com o narcotráfico, mas sempre alimentava e vestia.

O cangaceiro surgia em geral por força de conflitos de família, de posse de terras e reses, de agressões da polícia, casos de amor desfeito, ofensas públicas. Desfeiteado, injustiçado até o fundo da alma, partia para uma vingança longa e generalizada. Foi o que se deu com Virgulino. Perdera o pai José Ferreira da Silva, assassinado pelo alferes José Lucena, comandante de volante, por instigação de um vizinho incômodo, José Saturnino, a quem Virgulino, vaqueiro da família, acusara de furtar bodes.

Antes ou depois do pai, que jamais quis empunhar amas e revidar, a mãe Maria Lopes de Oliveira morreu de susto, durante um resguardo, ou quando mudavam de sitio na tentativa de evitar o pior. Por volta dos 20 anos, Virgulino meteu-se com os irmãos Antônio, Livínio e Ezequiel (os quatro irmãos restantes eram mulheres) no bando do cangaceiro Sinhô Pereira, que não demorou a liderar. De modo que não fundou o cangaço: apenas lhe deu galas e dele se fez rei. Seu antecessor mais famoso foi Jesuíno Alves Caiado, o Jesuíno Brilhante, primeiro da estirpe, temido na década de 1870.

Livínio morreu em 1925, em refrega com a polícia; Antônio, quando o fuzil caiu e disparou, num acampamento; Ezequiel, o Ponto Fino, em combate, 1931. Tudo na vida de Lampião e sua gente parecia fadado a tragédia. Assim teriam decidido os deuses imortais, ou as mouras.




RASO DA CATARINA

Nada a ver com anatomia feminina; tampouco com o baixo- ventre de alguma sertaneja arretada. O raso é uma região de cerca de 38 mil km2 ,no centro-leste da Bahia, entre os rios Vasa-Barris, ao sul, e o São Francisco, ao norte.


  Área inóspita, de escassa água salobra e fundos solos arenosos. Hoje é reserva biológica em que se tenta, além de outros empreen- dimentos, preservar a bela arara azul. Terra extre- mamente árida, cobre-a uma vegetação espinhosa e cortante. Alguém chamou- a de sarçal ardente – e, afora o Conselheiro com o seu cajado e camisolão sujo, ninguém ali se materializa para ditar mandamentos. Predominam o xique-xique, as palmatórias, a macambira, os rabos- de-raposa. Tudo entrançado. Reses que ali entram são consideradas perdidas pelos vaqueiros mais afoitos, embora se assevere que onde passa lombo de cavalo passa o cavaleiro.

Quando governos estaduais pressionados por grandes usineiros de açúcar e pecuaristas organizaram grupos militares e paramilitares para a caçada que se encarniçou nos últimos dez anos de estripulias do cangaceiro (o governo da Bahia chegou a oferecer 50 contos de réis, em 1930, a quem o prendesse ou matasse), o Rei Vesgo entrou com sua tropa no Raso da Catariana. Andava a fugir de uma jurisdição para outra.

O raso revelou-se um esconderijo satisfatório. É certo que as forças volantes (os “macacos”, como eram chamados, porque saltavam como símios ante o silvo e ricocheteio das balas jagunças), conduzidas pelo legendário rastreador pernambucano Antônio Cassiano, seguiram as pegadas de Lampião. Mas este conhecia o Nordeste palmo a palmo, pedra a pedra, loca atrás de loca. Sabia onde e como acampar e vigiar. Tinha algumas estratégias de guerrilha. Era um Napoleão encourado, com um tropicalista chapéu tricórnio de barbicacho e que se dava ao luxo da companhia de sua Josefina — a Maria Bonita de quem se falará adiante.

Ardis lhe sobravam. Por exemplo: mandar inverter os saltos e bicos dos sapatões ou alpercatas, para fazer crer que deixava o Raso, em vez de nele embrenhar-se; marchar em fila indiana, todos pisando nas mesmas pegadas, enquanto um, de costas, as desfazia com ramos de arbustos; ou então simulava a pegada de um caminhante único. Atacava e recuava para entrincheirar-se e atrair o inimigo. Sabia cavar e furar raízes de umbuzeiro para obter água, e tirá-la também do âmago de certas bromeliáceas. O escritor Ranulpho Prata descreve no livro Lampião a ambiência rude e quente, o faro do rastejador, as escaramuças, o acampamento desfeito num átimo, a fuga para outras virilhas do Raso da Catarina — um esconderijo bordejado pelas cidades e povoados de Paulo Afonso, Jeremoabo, Canudos e Mucuruté. Em Canudos, entre 1893 e 1897, tombaram trinta mil combatentes: soldados e fanáticos do visionário Antônio Conselheiro, adepto do regime monárquico. Canudos não se rendeu; acabou, como diz Euclides no fecho de Os Sertões.




AURA ROMÂNTICA

Quando invadia cidades e povoados, Virgulino Ferreira da Silva — perdão, capitão Virgulino, porque tinha patente, tal e qual o Vitorino Papa-Rabo de José Lins do Rego —costumava atirar moedas aos meninos. É o que reza o testemunho oral. Pobre remediado que tinha sido, antes de ter peças de ouro e prata na indumentária espaventosa, prendas nos bornais, anéis valiosos em quase todos os dedos, procurava captar as simpatias dos humildes. Perseguido pelos “macacos”, precisava de cobertura — espias e coiteiros.
Esmerava-se em gentilezas desse tipo. Avaliado o saque, separava o necessário à sobrevivência do bando, durante certo tempo – e distribuía o restante. Isso lhe assegurava recepção festiva quando voltasse, com direito a buchada de bode, vinho de jurubeba e outras iguarias.
O imaginário romântico em torno dessa figura propicia a redenção que hoje mais a aproxima de um Robin Hood do que de um Al Capone. Diz um dos muitos historiadores do cangaço que ele pedia desculpa pelas violências: “Não sou industrial nem fazendeiro. Só me resta esta vida”.

Esquecia-se das artes de arrieiro, mascate e pastor de gado. Da habilidade com que trabalhava o couro cru. Da máquina de costura em que era exímio. Dizem que, embora cabra macho, bordava melhor do que Maria Bonita. E lhe atribuem a criação da dança e ritmo do xaxado, muito embora talvez não passasse de divulgador e letrista, como em “Mulher Rendeira”, grande êxito de Vanja Orico, adaptado por Zé do Norte no filme O Cangaceiro, de Lima Barreto.

Olê, mulher rendeira, 
Olê, mulher rendá. 
Tu m´ensina a fazer renda 
Q´eu te ensino a namorá

Tinha leituras, mostrava-se atilado. Admirador de Napoleão, a partir do chapéu, do qual, com a contribuição de Dadá, criou a variante com estrelas e medalhas, e chegado a igrejas e bênçãos de padres, porque na caatinga espinhenta o misticismo era um bálsamo antes dos teólogos da libertação e dos sem-terra do Sr.Lula da Silva; Lampião, o maior e o mais midiático dos nossos muitos bandidos amava a visibilidade, o aparato dos ricos.

Estaria explicada, assim, a opção pelo crime. Os trajes pomposos e fidalgos, de seda estrangeira, o ouro e a prata são a montra instalada para que os cangaceiros fossem vistos, admirados, entronizados. Vingavam-se também por esse lado da exclusão social no semiárido dos patriarcas e políticos esbulhadores.

Servido uma vez por uma velha de 80 anos que havia abatido uma galinha, Lampião viu um companheiro que queria carne vermelha sair, voltar com uma cabra morta e gritar à hospedeira:

“Prepare logo, velha”.

“Ai”, chorou a velha. “Era a minha última, a do leite dos netinhos!”

“Pague a cabra”, ordenou o chefe, de vista baixa sobre o ensopado de galinha.

Irritado, o cangaceiro atirou umas moedas sobre a mesa.

“Tome. Dou de esmola’’.

“Pague a cabra”, insistiu o chefe, ainda a comer.

“Mas já paguei, Lampião”.

“Pagou não. Esse dinheiro foi de esmola. Você mesmo disse”.

Dr. Plínio Sodré, médico baiano especializado em ultrassonografia, conta que Lampião entrou em Piritiba com um companheiro ferido. O médico mais próximo, Carlos Ayres, primo carnal do ministro Ayres Britto, que veio a ser presidente do Supremo Tribunal Federal, morava no povoado de França. Havia uma senhora gravemente enferma. Lampião mandou aviar cavalo com duas padiolas laterais e levar os dois, com recomendações de muito cuidado com a mulher.

O rei do cangaço tinha um lado bom. Mas vê-lo à luz do puro maniqueísmo de palor romântico é um erro. Com ele conviviam o estuprador, o saqueador, o assassino que soltava presos, alinhava soldados e os fuzilava, tal e qual o Guevara do paredón cubano, por quem a esquerda brasileira tanto se apaixonou. Se Lampião adotou táticas de guerrilha, não o fez instado por atitude ideológica. Apenas fugia das volantes que o caçaram até o ataque final na Grota do Angico.

Neste episódio, a tropa do tenente João Bezerra da Silva — 48 meganhas com metralhadoras portáteis — e ele próprio portaram-se com uma selvageria em nada inferior à que o tempo tece sobre heróis e vilões. Desentranhar a verdade do aranzel de lendas e fatos é carregar água em cesto. De qualquer modo, o cangaço prossegue com outro rótulo, e outras vestes, e polidos senhores proprietários de sesmarias e mansões.





MARIA BONITA

Chamava-se Maria Gomes de Oliveira. Na intimidade, Maria de Déa. Lampião a tratava por Santinha. Era natural de Glória, segundo registram alguns historiadores; ou de Paulo Afonso, afirmam outros. Consta que, quando morava em Paulo Afonso ouviu relatos das façanhas de Lampião e o admirava. Sendo a família coiteira do dito cujo, vieram a conhecer-se e, assim dizem, chegaram a trocar bilhetes.


   Ela queria entrar para o bando — e ele relutava. Talvez esperasse uma decisão concreta. Maria era casada com o sapateiro José Miguel da Silva. Talvez já não estivesse casada quando ele a levou. Foi a primeira mulher a juntar-se ao bando. Lampião teria deixado bilhete ao marido espoliado, desculpando-se. Ela ia por “vontade própria”.

Bonita? É possível para os padrões de beleza sertanejos. O apelido fora ejetado por um ex-volante apaixonado — pegou na família e ganhou mundo na versalhada popular dos cordéis. Assim a descreve Wanessa Campos, um dos muitos exegetas do cangaço: “Baixinha, de pernas grossas e roliças. Seios pequenos, cabelos finos e olhos claros”. Tinha talhe de gente fina, feições regulares — enfim, uma espécie de serena beleza rústica. Pouco demonstrou da valentia que lhe atribuem, porque em geral as mulheres da quadrilha ficavam à margem dos tiroteios.

Maria Bonita teve com Virgulino três gestações falhas e uma filha única, Expedita, entregue aos 21 dias a uma família de confiança, já com 11 filhos para criar. Impossível a vida familiar naquele ramerrão de caminhadas estafantes, fugas precipitadas, risco de traições, raras tréguas entrecortadas de temores. O choro de uma criança os denunciaria. A mulher do capitão não conheceu a neta Vera Ferreira, que hoje lhe cultiva a memória. Mas visitou a filha três vezes, com Lampião — e a menina sabia de suas origens.

Para as atividades cotidianas, Maria Bonita vestia-se de brim grosso, da cor da polpa da goiaba madura, engalonado e revestido de vermelho nos punhos. Há um desses no Museu de História Natural, no Rio de Janeiro. Nos domingos e em festas apreciava os modelos cinza, com riscos de giz e enfeites de sinhaninha vermelha (fita ondulada ou em ziguezague). Era mais companheira, tal e qual as demais, à exceção de Dadá, que substituiu o seu homem quando ferido nos braços, do que combatente. Decerto sabiam atirar, e atiravam em caso de extrema necessidade — mas os cangaceiros as mantinham à parte. “Pouca gente sabe que de brava ela nada tinha”, atesta Vera, a neta. E completa as bondades da avó com os adjetivos agradável, carinhosa, bem-humorada, dada a brincadeiras e generosa. Sua presença no bando e a de outras mulheres há de ter contribuído para a redução de estupros e assassinatos de velhos e crianças.

Durou nove anos o amor, sem contar o namoro na Fazenda Malhada da Caiçara, em Paulo Afonso. “Sem dúvida, Maria Bonita viveu um grande amor por Lampião”, assegura a neta. E brande nesse sentido um argumento de peso: somente um amor apaixonado forçaria a mulher casada (para uns) ou separada (dizem outros) a romper fortes preconceitos e costumes da época.




MITO DO HERÓI MALDITO

Quem se faz vilão justiceiro ou vilão bandoleiro jamais será por acaso; sempre haverá este ou aquele motivo forte. Mas nada impedira o protagonista de vir a ser amado ou renegado, inclusive por si próprio.

É fundamentalmente um solitário. Para desempenhar bem as tarefas que assume, no intuito às vezes inconsciente de ocupar o vazio infernal na cabeça ou no coração, esse herói precisa desprender-se de compromissos, mesmo os de teor afetivo. Nada, ninguém deverá obstar-lhe ou estorvar-lhe as cavalgadas.

No emblemático e carismático filme de George Stevens, o infeliz Shane (Alan Ladd), sozinho no mundo, cumprindo sentença de provável perseguido em permanente fuga, poderia eximir-se de um duelo a bala a que não era chamado. E ficar com o rancho de Starret (Van Heflin), com o menino Joey (Brandon De Wilde), que o idolatrava — e, melhor de tudo, com Marian (Jean Arthur), a mulher de Starret. Mas não. Mata o pistoleiro Wilson (Jack Palance) no armazém do povoado, leva um tiro e, curvado na sela, num entardecer sombrio, afasta-se para o seu destino de homem-sombra, talvez o vale da morte. Joey corre atrás: “Volte, Shane!”. E, em última instância, confessa: “Mamãe te ama”. Eterno foragido (dos outros? de si mesmo? de um mundo que, conforme disse o poeta Auden, ele não fez, ele não quis?).
A estrutura psíquica elementar dos velhos samurais de Akira Kurosawa lhe é idêntica: o protagonista vivido tão bem por Toshiro Mifune, a ponto de não mais se desgrudar da nossa lembrança, faz o que julga que lhe cabe fazer e retorna à estrada, a sacudir os ombros. Nos seriados de 12, 13 ou 15 episódios da nossa infância, os heróis, às vezes mascarados, repeliam os assédios explícitos e implícitos do amor. Alguns sequer tiravam a venda dos olhos, ante de partir.
Vistos pelo prisma meramente ficcional, esses heróis ou bandidos, como queiram os leitores, entendem que a mulher e a família, com todos os seus ensejos de vida normal, costumam atrapalhar. Virá o filho, a necessidade imperiosa de construir e manter o lar, atividades rotineiras que destemperam o estofo da virilidade; conflitos que, comparados a tiroteios e outros enfrentamentos, empalidecem sob forma de aborrecidas picuinhas.
Virgulino Ferreira da Silva rendeu-se ao amor. Engraçou-se de Maria Bonita (assim apelidada não por ele. mas provavelmente por um desesperançado ex-policial das volantes). A família da musa o acoitava. Lampião dava-lhe lenços a bordar.

Vem à tona, então, a pergunta que ainda se faz: o que atraiu tantas sertanejas ao cangaço? Algumas, como a Dadá, de Corisco, segundo na hierarquia do bando de Lampião, foram levadas à força, estupradas, sequestradas, trocadas por jóias. O jornalista Antônio Amaury Corrêa de Araújo, citado por Manoel Severo, conta que Corisco, o Diabo Loiro, tivera uma noiva chamada Darvina, apelidada Dadá. A mulher inesquecível. Certa ocasião ele viu Sérgia Ribeiro da Silva passar no seu passo felino de jaguaretê (teria 13 anos) e achou- a parecida com a outra. Raptou-a e apelidou-a Dadá. Simples, pois não? Dadá habituou-se e, de todas as cangaceiras, teria sido a única a participar, fuzil na mão, de tiroteios e arruaças. A maioria delas, claro, aprendera a atirar, para caso de necessidade extrema, mas Dadá entrava nas batalhas, substituiu Corisco enquanto este, chefe de bando dissidente de Lampião, sarava de ferimentos nos braços. Atividades à parte, continuavam amigos.
Nem todos no bando aceitaram a presença de mulheres: Balão queixava-se que elas atrapalhavam nas retiradas, retinham o grupo, se grávidas, facilitavam o faro e as ouças dos rastejadores. Balão, com seu instinto insatisfeito de revoltoso, achava que mulher teria apenas de cozinhar, costurar e bordar aqueles trajes armoriais nordestinos ornados de moedas, estrelas e fitas, além de entregar-se aos requebros, ou “cochilos”, como disse Luiz “Lua” Gonzaga, do amor.
Para a mulher, a vida nos sertões, àquela época do cangaço, era uma desventura completa. Se o homem sempre podia cair no oco do mundo, e virar renegado, a ela tocava povoar o vazio. De modo que o cangaço, com a figura meio napoleônica, meio mística, meio robinhooodiana de Lampião e seus comparsas, e a promessa de mais haveres e menos deveres, atraiu-as ao calor escaldante da caatinga, à água salobra, ao solo pedregoso, à entrançada vegetação espinhenta. Maria Bonita foi por puro amor.
É hora de dizer quem era de quem no bando de cangaceiros, com o devido crédito ao sumário do jornalista Rogério Pacheco Jordão e achegas de João Sousa Lima, historiador de Paulo Afonso e arredores:
Dadá (de Corisco), Neném (de Luiz Pedro), Durvalina (de Moreno), Sila (de Zé Sereno), Lídia (de Zé Baiano), Inacinha (de Gato), Adília (de Canário), Cristina (de Português), Maria Jovina (de Pancada), Dulce (de Criança), Moça (de Cirilo Engrácia), Otília (de Mariano), Maroca (de Mané Moreno), Mariquinha (de Labareda), Maria Ema (de Velocidade), Enedina (de Cajazeira), Rosalina (de Chumbinho), Estrelinha (de Cobra Viva), Hortênsia (de Volta Seca), Lacinha (de Gato Preto), Iracema (de Lua Branca), Eleonora (de Azulão), Lili (de Moita Braba), Catarina (de Sabonete), Mocinha (de Medalha), Maninha (de Gavião), Maria Juriti (de Juriti), Dora (de Arvoredo), Marina (de Laranjeira), Dinha (de Delicado).
Na Coluna Prestes também havia mulheres. E os meios de sobrevivência eram semelhantes: invasão, saques em fazendas, vilas, cidades.


BILHETES E AMEAÇAS
Inteligência, além de seus significados exatos, significa trampolinagem. Indivíduos calmos, supostamente resignados ou omissos, de repente se desenroscam e picam: é o golpe peçonhento. Assim se entende ainda, e em proporção crescente, o dom da inteligência em todas as esferas sociais, agora reforçado pela tecnologia.
Lampião foi inteligente, neste sentido. Socialmente excluído, revoltou-se ao ponto de banir-se ele próprio. Tinha pouca instrução, faltava-lhe fluência no discurso imperativo de “interventor” ou “governador” dos sertões. No entanto, sabia ser claro e contundente nas mensagens, conforme se depreende dos bilhetes em português tosco reproduzidos pelo historiador Oleone Coelho Fontes.
A um sargento comandante do destacamento de Juazeiro do Norte, Ceará, em 1926:
“Il.mo sr. José António — Eu lhe faço esta, até não devia me sujeitar a te escrever porem, sempre mando te avisar, pois, eu soube que vc., no dia que eu cheguei ahi na fazenda vc., esteve pronto para vir me voltar orem, eu sempre lhe digo que você crie juízo, e deixe de violências, apois eu venho chamando é por homem, e mesmo assim vc. com zuada não me faz medo. Eu tenho visto, é, coisa forte, e não me assombra, portanto vc. Deve tratar de fazer amigos não para fazer como vc. Diz. Sempre lhe aviso, que é para depois vc. não se arrepender e nada mais, não se zangue, isto é um conselho que lhe dou. — Do Capitão
Virgolino Pereira (?) da Silva”.

Ao Sr. José Batista, Fazenda Porteira, Cumbe (atual Euclides da Cunha), sem data — Sua saudação não pacei em sua casa soubi que não estava mas tenho estaque é para vancê manda por este portado 5 contos de rs.
“Olhi é para não deixar de mandar apois não mandando é pior para vancê apois aguardo sua resposta. ”Sem mais do Capm. “Virgulino Ferreira Lampião”.
Mais esta: “Sergipe. Ilmo Snr. João Apostolo Sua saudação
Com todos lhe faço esta para o sr. mandar-me um conto de Rs. Apois não quero maçada faço esta com urgença Cp. Lampião”.
E, para findar os exemplos, este aviso curto e grosso a José da Costa Dórea, outubro de 1932:
“Seu Dora se aprepare para morrer 

Camp. Virgulino Ferreira Lampião”.


MISTICISMO
A credulidade do sertanejo — e, de resto, de outros segmentos incultos — é (ou era) espessa e opaca. Anda sempre com o nome de Deus na boca, a propósito de tudo e de nada. Engrossa uma agenda de penúrias e expectativas de salvação que lhe endurece a alma, que o transforma em estóico extremado, sobretudo nas estiagens longas e advento da seca.
Pelo menos até um passado recente, o sertanejo fazia-se alto credor do Reino dos Céus, sem dar prioridade ao reino na terra pregado pela Teologia da Libertação — uma dissidência pragmática no apostolado católico submisso ao instalado poder de mando, a cuja sombra viceja. Promessas repetidas de satisfatória vida eterna cansam; melhor antecipar a participação na mesa do consumo.
É de lamentar-se, apenas, que tal mudança de rumo propicie a subida de notórios malfeitores sanguinários aos altares, para culto idólatra de setores de pensamento ideologicamente fanatizados. Seria este o caso do argentino-cubano Ernesto Guevara, em quem alguns exegetas ancoram o “guerrilheiro” Lampião, na qualidade de antecipador.
Mas o Rei Vesgo, vale repetir, não tinha programa revolucionário em mente. Era protagonista de uma revolta inconsciente, indefinida, mais de natureza pessoal, familiar e comunitária. Agia instigado por injustiças econômicas e sociais flagrantes, mas, crédulo que era do perdão divino (e da história, convém frisar), absolvido que se sentia pela bênção de padres, comungou com gosto e fervor espiritual de missas paroquianas.
Além da devoção ao Padre Cícero, o taumaturgo de Juazeiro do Norte, até hoje cultuado pelas populações nordestinas como milagreiro, e em processo de santificação, Lampião desfrutou da amizade — e por que não dizer favores? — de alguns padres. O “Padim Ciço”, por exemplo, entregou-lhe a patente de capitão dos Exércitos Patrióticos, para que enfrentasse a Coluna Prestes – fato que só teria ocorrido uma vez, e antes. Nesse lance, Lampião julgara-se rastreado pela polícia.
O padre Artur Passos chegava ao povoado sergipano de Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo em lombo de burro, meados de agosto, para celebrar missas em louvor da padroeira. Hospedava-o Teotônio Alves Lima, o China, pessoa influente, de convidados à mesa, sabedor de sua amizade secreta com Lampião, sustentada pelo coiteiro Mané Félix. Lá pelas tantas, avisado e fingidor, porque no púlpito combatia o cangaço, o padre sumia-se a cavalo, com o recadeiro e uma provisão de aguardentes e alimentos. No acampamento confessava os cangaceiros, absolvia-os e não desdenhava um baralho, durante horas, enquanto bebiam vinho de jurubeba e cachaça apurada. Segundo narra o cronista Rangel Alves da Costa, quando o fogo lhe subia às ventas Padre Artur danava-se a dedilhar uma sanfona.
Do exposto até aqui transparece que o cangaço, mais que banditismo foi um meio de vida. O próprio Rei Vesgo teria dito ao padre Emílio Ferreira, em 1929: “Hoje em dia a vida só é boa para o soldado e para o bandido”. O Brasil penava uma fase dura de insegurança institucional, estava longe da industrialização ensaiada por Getúlio Vargas. A crise do café, maior bem de exportação, deve ser pesada na Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo.

MUSEU DO CANGAÇO
Focos de banditismo espocavam à farta na América Latina. O fenômeno do cangaço somente é brasileiro nas peculiaridades, guarda- roupa e cenografia. A neta de Lampião, Vera Ferreira, empenha-se em preservar a memória do avô e, alheia ao fato de ter sido ele malfeitor cruel ou justiceiro, cria o Museu do Cangaço com depoimentos, objetos e imagens — algo capaz de montar e sugerir um roteiro mais fiel do que a miscelânea de verdade e lenda.
Teria Lampião cometido todas as barbaridades que lhe imputam?, ela pergunta, e com razão. Histórias cruéis se sucedem. Exemplos: a esposa de um proprietário rural, de resguardo de um parto, em Simão Dias, foi estuprada e veio a falecer. A fazenda Aurora, invadida em ato de vingança, virou pó: casa-grande, curral e cercas queimadas, 40 vacas abatidas. A um potentado, trancou-lhe os testículos numa gaveta e foi-se com a chave, às risadas, deixando-lhe uma quicé afiada ao alcance da mão. Acusam-no de queimar o rosto de mulheres com ferro em brasa; de decepar orelhas e línguas; de arrancar olhos.
Há outras facetas do rei do cangaço: o que ia ao cinema em Capela, Pernambuco, com Maria Bonita, para um seriado americano de que gostava, e filmes de amor. Viram uns dez. Saíam antes do fim, se este não fosse feliz, amoroso. O que tinha o hábito de ler as revistas Fon-Fon, Noite Ilustrada e O Cruzeiro, e inspirar-se em poses fotográficas de Greta Garbo e Rodolfo Valentino, além de figurinos, que discutia com Maria Bonita. O letrista de canções regionalistas. O sanfoneiro. Aquele que trescalava perfume Fleur d´Amour, arriscando- se a que o farejassem mais rápido na caatinga. O apreciador do uísque White Horse. O que não se desfazia de máquina de costura Singer. O que se adornava de ouro roubado às madames e coronéis.
Esses pormenores levam certos intérpretes a vislumbrar e até mesmo ressaltar um vezo feminino no cangaço, porventura incitados pela moda atual de inclusão ampla de homossexuais, de quase pregação do homossexualismo e suas variantes.
É fato — o acervo fotográfico atesta-o em parte — que os vaidosos cangaceiros usavam brincos e colares, enchiam os dedos de anéis, tinham lenços de seda importados. Os de Lampião traziam bordadas as iniciais CVFL (Capitão Virgulino Ferreira Lampião). O capitão do cangaço tolerava a mancebia, os afrescalhados, consentia de bom grado que um cabra lhe fizesse cafuné. Assim diz Daniel Lins, autor de tese de doutorado sobre Lampião, na Sorbonne. Nega- lhe, paradoxalmente, a condição de gay. Não seria de estranhar se afirmasse. Até Jesus Cristo já foi recrutado. O historiador Frederico Pernambuco de Melo ameniza sugestões de tal ordem. A seu ver, o cangaço antecipou no Brasil a onda feminista: pela primeira vez, acentua ele, homens dividiam com mulheres os serviços caseiros; pela vez primeira as saias subiam acima dos joelhos e o machismo cedia terreno.


GROTA DO ANGICO
Acompanhado de Maria Bonita e dez cangaceiros, o Rei Vesgo atravessou o Rio São Francisco, a vau, sujeitando-se a perder na água o “corpo fechado” que lhe atribuía a crendice popular, e acampou a 800 metros do lado sergipano, em terras da Fazenda Angico, município de Poço Redondo. Era mais um esconderijo a que o levava o coiteiro Pedro de Cândido.
Estrategicamente, o sítio chamado Grota do Angico era recluso, mas com a desvantagem de encostas pedregosas. Entrava-se pelo arenoso leito seco de um córrego e, uma vez fechado o acesso, em baixo, a grota se converteria em armadilha.
Raiava o dia 28 de julho, 1938. Às 5:30 o grupo ainda dormia quando a tropa alagoana do tenente Bezerra, com fuzis e três ou quatro metralhadoras, dispostos em quatro grupos, cercaram o grotão. O coiteiro Pedro de Cândido, vítima de denúncia, fora torturado à ponta de punhal pelos “macacos”, que lhe arrancaram as unhas, e cedeu.
Durou 15 minutos a fuzilaria. Lampião, um dos primeiros a despertar, foi também o primeiro a tombar morto. O cangaceiro Luís Pedro teria furado o cerco e escapado, se não voltasse a chamado de Maria Bonita que lhe lembrava a promessa de morrer ao lado do chefe. Havia mais quatro mulheres: Maria de Juriti, Dulce de Criança, Enedina de Cajazeiras e Sila de Zé Sereno. A rainha do sertão levou uma bala na cabeça, quando escalava uma encosta.
Cortadas as cabeças dos cangaceiros, a tropa atirou-se ao saque. Na ânsia de arrebatar jóias e dinheiro, decepou dedos e pulsos, conforme diz Ivanildo Silveira, de Natal, Rio Grande do Norte. O próprio Bezerra, autor do livro Como Dei Cabo de Lampião, é acusado de ter- se portado com extrema crueldade. Urubus cevaram-se nos corpos e morreram — o que levantou a hipótese de envenenamento prévio dos facínoras, mas é que tinham preservado os restos mortais com cal e creolina. As cabeças dos 11 mortos foram expostas nas escadarias de Piranhas, depois em Santana do Ipanema e Maceió. A macabra mostra itinerante durou anos, até as cabeças serem recolhidas ao Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, e posteriormente sepultadas por pressão de intelectuais e do clero.








terça-feira, 15 de novembro de 2016

CRÍTICA DE ARIANO SUASSUNA SOBRE O FORRÓ ATUAL

“Tem rapariga aí? Se tem, levante a mão!”. A maioria, as moças, levanta a mão. Diante de uma platéia de milhares de pessoas, quase todas muito jovens, pelo menos um terço de adolescentes, o vocalista da banda que se diz de forró utiliza uma de suas palavras prediletas (dele só não, e todas bandas do gênero). As outras são 'gaia', 'cabaré', e bebida em geral, com ênfase na cachaça. Esta cena aconteceu no ano passado, numa das cidades de destaque do agreste (mas se repete em qualquer uma onde estas bandas se apresentam). Nos anos 70, e provavelmente ainda nos anos 80, o vocalista teria dificuldades em deixar a cidade.
Pra uma matéria que escrevi no São João passado baixei algumas músicas bem representativas destas bandas. Não vou nem citar letras, porque este jornal é visto por leitores virtuais de família. Mas me arrisco a dizer alguns títulos, vamos lá: Calcinha no chão (Caviar com Rapadura), Zé Priquito (Duquinha), Fiel à Putaria (Felipão Forró Moral), Chefe do puteiro (Aviões do forró), Mulher Roleira (Saia Rodada), Mulher roleira a resposta (Forró Real), Chico Rola (Bonde do Forró), Banho de língua (Solteirões do Forró), Vou dá-lhe de cano de ferro (Forró Chacal), Dinheiro na mão, calcinha no Chão (Saia Rodada), Sou viciado em Putaria (Ferro na Boneca), Abre as pernas e dê uma sentadinha (Gaviões do forró), Tapa na cara, puxão no cabelo (Swing do forró). Esta é uma pequeníssima lista do repertório das bandas.
Porém o culpado desta 'desculhambação' não é culpa exatamente das bandas, ou dos empresários que as financiam, já que na grande parte delas, cantores, músicos e bailarinos são meros empregados do cara que investe no grupo. O buraco é mais embaixo. E aí faço um paralelo com o turbo folk, um subgênero musical que surgiu na antiga Iugoslávia, quando o país estava esfacelando-se. Dilacerado por guerras étnicas, em pleno governo do tresloucado Slobodan Milosevic surgiu o turbo folk, mistura de pop, com música regional sérvia e oriental. As estrelas da turbo folk vestiam-se como se vestem as vocalistas das bandas de 'forró', parafraseando Luiz Gonzaga, as blusas terminavam muito cedo, as saias e shortes começavam muito tarde.
Numa entrevista ao jornal inglês The Guardian, o diretor do Centro de Estudos alternativos de Belgrado. Milan Nikolic, afirmou, em 2003, que o regime Milosevic incentivou uma música que destruiu o bom-gosto e relevou o primitivismo estético. Pior, o glamour, a facilidade estética, pegou em cheio uma juventude que perdeu a crença nos políticos, nos valores morais de uma sociedade dominada pela máfia, que, por sua vez, dominava o governo.
Aqui o que se autodenomina 'forró estilizado' continua de vento em popa.
Tomou o lugar do forró autêntico nos principais arraiais juninos do Nordeste. Sem falso moralismo, nem elitismo, um fenômeno lamentável, e merecedor de maior atenção. Quando um vocalista de uma banda de música popular, em plena praça pública, de uma grande cidade, com presença de autoridades competentes (e suas respectivas patroas) pergunta se tem 'rapariga na platéia', alguma coisa está fora de ordem. Quando canta uma canção (canção?!!!) que tem como tema uma transa de uma moça com dois rapazes (ao mesmo tempo), e o refrão é 'É vou dá-lhe de cano de ferro/e toma cano de ferro!', alguma coisa está muito doente. Sem esquecer que uma juventude cuja cabeça é feita por tal tipo de música é a que vai tomar as rédeas do poder daqui a alguns poucos anos. 


*Ariano Suassuna**

Observação:
O secretário de cultura Ariano Suassuna foi bastante criticado, numa aula-espetáculo, no ano passado, por ter malhado uma música da Banda Calipso, que ele achava (deve continuar achando, claro) de mau gosto. Vai daí que mostraram a ele algumas letras das bandas de 'forró', e Ariano exclamou: 'Eita que é pior do que eu pensava'. Do que ele, e muito mais gente jamais imaginou.
Realmente, alguma coisa está muito errada com esse nosso país, quando se levanta a mão pra se vangloriar que é rapariga, cachaceiro, que gosta de puteiro, ou quando uma mulher canta 'sou sua cachorrinha', aonde vamos parar? Como podemos querer pessoas sérias, competentes? E não pensem que uma coisa não tem a ver com a outra não, pq tem e muito! E como as mulheres querem respeito como havia antigamente? Se hoje elas pedem 'ferro', 'quero logo 3', 'lapada na rachada'? Os homens vão e atendem. Vamos passar essa mensagem adiante, as pessoas não podem continuar gritando e vibrando por serem putas e raparigueiros não. Reflitam bem sobre isso, eu sei que gosto é gosto... Mas, pensem direitinho se querem continuar gostando desse tipo de 'forró' ou qualquer outro tipo de ruído, ou se querem ser alguém de respeito na vida!.


segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O LEGADO DE DOM HELDER CAMARA

Frei Betto

O arcebispo Dom Helder Camara (1909-1999) é figura singular na história da Igreja Católica no Brasil. Diminuto, magérrimo, poucos o superavam em oratória: adornava as ideias com gestos efusivos e um senso de humor incomum ao se tratar de bispos. Por onde andasse, lotava auditórios: Paris, Nova York, Roma... Entre os anos de 1960-80, apenas dois brasileiros gozavam de ampla popularidade no exterior: Pelé e Dom Helder.
 Tamanho o carisma dele que, em 1971, em Paris, convidado a falar num salão capaz de comportar 2 mil pessoas, tiveram que transferi-lo para o Palácio de Esportes, que abriga 12 mil.
Hábitos simples
Conheci-o em 1962, ao chegar ao Rio, vindo de Minas, para integrar a direção nacional da JEC (Juventude Estudantil Católica). Dom Helder era bispo-auxiliar da arquidiocese carioca e responsável pela Ação Católica. Vivia de seu salário como assessor técnico (aprovado em concurso público) do Ministério da Educação, morava modestamente, almoçava em botequim – ou melhor, beliscava, pois a vida toda comeu como passarinho – e subia as favelas como quem se sente em casa, sempre trajando batina, hábito mantido por toda a vida, mesmo quando o Concílio Vaticano II (1962-1965) permitiu aos clérigos saírem à rua em trajes civis.
Desde seus tempos de seminarista em Fortaleza – nascera em Messejana, hoje bairro da capital cearense – Dom Helder cultivava hábitos incomuns: deitava-se por volta das dez ou onze da noite, levantava-se às duas da madrugada, trocava a cama por uma cadeira de balanço, na qual orava, meditava, lia e escrevia cartas e poemas. Todos os seus livros foram concebidos naquele momento de “vigília”, como dizia. Às quatro retornava ao leito, dormia por mais uma hora para, em seguida, celebrar missa e iniciar seu dia de trabalho.
 Com frequência Dom Helder visitava a “república” das Laranjeiras, onde se amontoavam os estudantes dirigentes da JEC e da JUC (Juventude Universitária Católica). Betinho (Herbert Jose de Souza) e José Serra, líderes estudantis, encontravam ali hospedagem garantida ao vir de Minas ou São Paulo.
 Era Dom Helder quem nos assegurava, graças a seus relacionamentos em todas as camadas sociais, passagens aéreas pelo Brasil, bolsas de estudos, e até alimentação. Na época, o governo dos EUA, preocupado com a ameaça comunista na América Latina (sobretudo após a vitória da Revolução Cubana), lançara a campanha “Aliança para o Progresso”, que consistia, basicamente, em remeter alimentos às famílias miseráveis.
 Para socorrer-nos da penúria na “república”, Dom Helder, responsável pela distribuição dos donativos, nos enviava caixas de papelão contendo o que denominávamos “leite da Jaqueline” e “queijo do Kennedy”. Como os produtos ficavam meses no porto, sujeitos ao calor carioca, vários de nós tivemos problemas de saúde por ingeri-los.
Senso de oportunidade
O maior sonho de Dom Helder era a erradicação da miséria no mundo. Sonhava com o ano 2000 sem fome. Ainda no Rio, criou o Banco da Providência e a Cruzada São Sebastião, no intuito de pôr fim às favelas. Graças a doações, edificou no Leblon um conjunto de prédios, para cujos apartamentos transferiu famílias de uma favela próxima. Não deu certo. Sem recursos para pagar os impostos (luz, água, telefone...), os moradores passaram a sublocar os domicílios e a obter renda graças à venda de torneiras, pias e outras peças do imóvel. 
 Para angariar recursos a suas obras, Dom Helder não titubeava em comparecer a programas de auditório de grande audiência televisiva. Certa ocasião foi convidado por um apresentador para sortear prendas expostas no palco e vistas por todos, exceto pela pessoa trancada numa cabine opaca. Calhou de ser um desempregado. “Seu Joaquim, o senhor troca isto por aquilo?” E sem nomear o objeto, Dom Helder apontava um liquidificador e, em seguida, um carro. Seu Joaquim respondia “sim” e toda a platéia vibrava. Em seguida, Dom Helder indagou se trocava o carro por um abridor de latas. O homem topou. E não mais arredou pé, cismou que escolhera a melhor prenda. Ao sair da cabine, recebeu dos patrocinadores, decepcionado, o abridor. E Dom Helder mereceu um polpudo cheque. O arcebispo não teve dúvidas: “Seu Joaquim, o senhor troca este cheque pelo abridor?
 No dia seguinte, no Palácio São Joaquim, onde funcionava a cúria do Rio, criticamos Dom Helder por ter aberto mão de um recurso que poderia reforçar suas obras sociais. Ele justificou-se: “Perdi o cheque, ganhei em publicidade. Esperem para ver quanto dinheiro vou angariar.”
Visão empreendedora
Homem carismático, dotado de forte espírito gregário, era difícil alguém – incluído quem o criticava – não se deixar envolver pela energia que dele emanava no contato pessoal. JK quis que se candidatasse a prefeito do Rio. Dom Helder jamais aceitou meter-se em política partidária; bastava-lhe, como lição, o erro de juventude, quando demonstrou simpatia pelos integralistas.
 Por sua iniciativa, foram fundados, em 1955, o CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano -, que congrega e representa os bispos do nosso Continente, e a CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, pólo articulador dos prelados de nosso país, do qual ele foi o primeiro secretário-geral.
Bispo vermelho
 Numa época em que não havia Igreja progressista nem Teologia da Libertação, Dom Helder, graças à sua sensibilidade social e sua opção pelos pobres, era tido por comunista, difamação acentuada após a implantação da ditadura militar no Brasil, em 1964. Costumava comentar: “Se defendo os pobres, me chamam de cristão; se denuncio as causas da pobreza, me acusam de comunista”. 
 Nomeado arcebispo de São Luís (MA) no mesmo mês do golpe, antes de tomar posse o papa Paulo VI o transferiu para Olinda e Recife, onde permaneceu até morrer.
 Em 1972 o nome de Dom Helder despontou como forte candidato ao Prêmio Nobel da Paz. Há fortes indícios de que não foi laureado por duas razões: primeiro, pressão do governo Médici. A ditadura se veria fortemente abalada em sua imagem exterior caso ele fosse premiado. Mesmo dentro do Brasil Dom Helder era considerado persona non grata. Censurado, nada do que o “arcebispo vermelho” falava era reproduzido ou noticiado pela mídia de nosso país.
 A outra razão: ciúmes da Cúria Romana. Esta considerava uma indelicadeza, por parte da comissão norueguesa do Nobel da Paz, conceder a um bispo do Terceiro Mundo um prêmio que deveria, primeiro, ser dado ao papa...
 No Recife, Dom Helder lançou a Operação Esperança: promoveu reforma agrária nas terras da arquidiocese; passou a visitar favelas, mocambos e bairros pobres; estreitou laços com artistas, universitários e intelectuais.
 Graças ao seu poder de articulação e carisma profético, em 1973 bispos e superiores religiosos do Nordeste fizeram ecoar a primeira denúncia cabal à ditadura feita por católicos: o manifesto “Ouvi os clamores de meu povo”. O documento, recolhido pela repressão, foi divulgado através de edições clandestinas mimeografadas.
Homem de fé
Um dia, o governo militar, preocupado com a segurança do arcebispo de Olinda e Recife, temendo que algo acontecesse a ele – um atentado ou “acidente” - e a culpa recaísse sobre o Planalto, enviou delegados da Polícia Federal para lhe oferecer um mínimo de proteção. Disseram-lhe: “Dom Helder, o governo teme que algum maluco o ameace e a culpa recaia sobre o regime militar. Estamos aqui para lhe oferecer segurança”.
 Dom Helder reagiu: “Não preciso de vocês, já tenho quem cuide de minha segurança”. “Mas, Dom Helder, o senhor não pode ter um esquema privado. Todos que dispõem de serviço de segurança precisam registrá-lo na Polícia Federal. Esta equipe precisa ser de nosso conhecimento, inclusive devido ao porte de armas. O senhor precisa nos dizer quem são as pessoas que cuidam da sua segurança.”
 Dom Helder retrucou: “Podem anotar os nomes: são três pessoas, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.”
 Dom Helder morava numa casa modesta ao lado da igreja das Fronteiras, no Recife. Frequentemente, as pessoas que tocavam a campainha eram atendidas pelo próprio arcebispo. Certa noite, a polícia fez batida numa favela da capital pernambucana, em busca do chefe do tráfico de drogas. Confundiu um operário com o homem procurado. Levou-o para a delegacia e passou a torturá-lo.
 Pela lógica policial, se o preso apanha e não fala é porque é importante, treinado para guardar segredos. Vizinhos e a família, desesperados, ficaram em volta da delegacia ouvindo os gritos do homem. Até que alguém sugeriu à esposa do operário recorrer a Dom Helder.
  A mulher bateu na igreja das Fronteiras: “Dom Helder, pelo amor de Deus, vem comigo, lá na delegacia do bairro estão matando meu marido a pancadas.” O prelado a acompanhou. Ao chegar lá, o delegado ficou assustadíssimo: “Eminência, a que devo a honra de sua visita a esta hora da noite?”
 Dom Helder explicou: “Doutor, vim aqui porque há um equívoco. Os senhores prenderam meu irmão por engano.” “Seu irmão?!” É, fulano de tal – deu o nome – é meu irmão”. “Mas, Dom Helder – reagiu o delegado perplexo -, o senhor me desculpe, mas como podia adivinhar que é seu irmão. Os senhores são tão diferentes!”
 Dom Helder se aproximou do ouvido do policial e sussurrou: “É que somos irmãos só por parte de Pai”. “Ah, entendi, entendi.” E liberou o homem.
 De fato, irmãos no mesmo Pai.
Perseguições e direitos humanos
Durante o regime militar, Dom Helder moveu intensa campanha no exterior de denúncia de violações dos direitos humanos. O governador de São Paulo, Abreu Sodré, tentou criminalizá-lo. Alegava ter provas de que Dom Helder era financiado por Cuba e Moscou. Alguns bispos ficavam sem saber como agir, como foi o caso do cardeal de São Paulo, Dom Agnelo Rossi, amigo do governador e de Dom Helder. Não foi capaz de tomar uma posição firme na contenda. Mais tarde a denúncia caiu no vazio, não havia provas, apenas recortes de jornais.
 Incomodava ao governo ver desmoralizada, pelo discurso de Dom Helder, a imagem que ele queria projetar do Brasil no exterior, negando torturas e assassinatos. Dom Helder ressaltava que, se o governo brasileiro quisesse provar que ele mentia, então abrisse as portas do país para que comissões internacionais de direitos humanos viessem investigar, como havia feito a ditadura da Grécia.
 Se hoje, na Igreja, se fala de direitos humanos, especificamente na Igreja do Brasil, que tem uma pauta exemplar de defesa desses direitos, apesar de todas as contradições, isso se deve ao trabalho de Dom Helder. Nenhum episcopado do mundo tem agenda semelhante à da CNBB na defesa dos direitos humanos. A começar pelos temas anuais da Campanha da Fraternidade: idoso, deficiente, criança, índio, vida, segurança etc.  Neste ano de 2010, economia. Isso é realmente um marco, algo já sedimentado. Também as Semanas Sociais, que as dioceses, todos os anos, promovem pelo Brasil afora, favorecem a articulação entre fé e política, sem ceder ao fundamentalismo.
 A Igreja Católica e o Brasil devem muito a Dom Helder Câmara, que desclandestinizou a pobreza existente em nosso país e induziu poder público e cristãos a encarar com seriedade os direitos dos pobres à vida digna e feliz. O profeta nascido em Messejana foi, sim, um autêntico discípulo de Jesus Cristo.