domingo, 10 de outubro de 2010

Vou embora. Não posso aceitar isso, em nome da minha dignidade

Extraído do Livro ""Do golpe ao Planalto - uma vida de repórter".
Ricardo Kostcho
Pág. 225
(...)
O único problema mais que tivemos no relacionamento coma imprensa ao longo da campanha aconteceu por culpa minha. Lula já havia mantido encontros e participado de almoços com os dirigentes dos principais meios de comunicação, mas resistia a atender ao convite da Folha para o tradicional almoço com os diretores, editores e repórteres especiais. Quase toda semana, “seu” Frias o alguém a seu pedido repetia o convite, que eu voltava a levar a Lula. Este alegava que noutras ocasiões tinha ficado contrariado com a maneira pouco cortês como fora tratado no jornal. Tanto insisti, que ele acabou me autorizando a marcar o almoço. Impôs, no entanto, que o número de participantes fosse reduzido, para que pudesse conversar melhor com o “seu” Frias.
Em razão de algum mal-estar ocorrido em almoços anteriores., dos quais não participei, o clima já não pareceu muito amigável desde o momento em que “seu” Frias recebeu Lula e José Alencar. Otavio Frias Filho ficou calado, enquanto Lula não parava de falar de seus planos para o país e da importância de ter um vice como Alencar. Assim que os comensais sentaram à mesa, Frias Filho disparou a primeira pergunta: Se Lula se sentia em condições de governar o país, mesmo sem ter se preparado paara isso, não sabendo nem falar inglês. O candidato fez uma expressão de incredulidade,  olhou para mim como quem diz: ‘E eu tinha que ouvir isso?’, engoliu em seco e deu uma resposta até tranqüila diante daquela situação constrangedora.
Como se tivesse sido ensaiadas as perguntas seguiram no mesmo tom hostil ao convidado até que, já quase na hora em que seria servida a sobremesa, alguém quis saber como ele se sentia ao aceitar uma aliança com Paulo Maluf. O argumento era que, se o PL apoiava Maluf na eleição pra governador de São Paulo, o candidato do PT a presidente também estaria se aliando ao político que mais combatera durante toda a história do partido. Não havia, porém, nenhuma aliança em São Paulo entre o PP e  o PT, que disputava a mesma eleição tendo como candidato o deputado federal José Genoíno. Foi a gota d’água. Lula não respondeu; levantou-se, dirigiu-se a “seu” Frias e comunicou: ‘O senhor me desculpe, mas eu não posso mais ficar aqui. Vou embora. Não posso aceitar isso, em nome da minha dignidade’.
Ficou todo mundo paralisado. “seu” Frias levantou-se também. Antes de sair, Lula ainda disse a Otavinho, o único que permaneceu na sala: ‘Eu não tenho culpa se você está nervoso porque o teu candidato vai mal nas pesquisas’. Para ele a Folha estava apoiando José Serra. Pegando no braço do candidato, “seu” Frias o acompanhou até o elevador e depois até o carro, no estacionamento, com os outros todos caminhando atrás. ‘ Nunca tinha acontecido isso antes na nossa casa’, lamentou.

Dados Técnicos:
Do golpe ao Planalto - Ricardo Kotscho
Cia das Letras - 2006
368 Páginas

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