sábado, 2 de novembro de 2013

Mínimo multiplicador (Carta Capital)

Em uma década, o Bolsa Família retira 22 milhões de brasileiros da miséria e dinamiza a economia nos grotões
MINADOR DO NEGRÃO, no interior de Alagoas, está acostumada a conviver com o drama da seca. A recente estiagem secou os reservatórios de água, comeu o verde das pastagens e dizimou 20% do gado. À planície avermelhada, pontuada por mandacarus e palmas, é a mesma de 50 anos atrás, quando o município serviu de cenário para o longa-metragem Vidas Secas, inspirado no romance de Graciliano Ramos. Apesar da paisagem desoladora, o comércio local prospera como em nenhum outro momento de sua história. Muitos moradores atribuem o feito ao Bolsa Família, programa de transferência de renda do governo federal, “As pessoas aqui sobrevivem da agricultura. Se não chove, não tem nada. Agora, a mulher recebe o beneficio, faz umafeirinha nacidade e alimenta a economia”, afirma a prefeita, Maria do Socorro Ferro, do PSDB, indiferente ao DNApetista do programa. Os repasses federais contemplam 872 famílias na cidade, mais de dois terços da população.
“Não fosse essa renda, muita gente teria morrido de fome.”
  O programa atende atualmente 13,8 milhões de famílias brasileiras, o equivalente a um quarto da população. O valor médio do benefício é de 152 reais. Para 2013, o orçamento previsto chega a 24 bilhões de reais. O elevado investimento tem retorno. Cada real transferido pelo governo gera 2,4 reais no consumo final das famílias, segundo um estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no dia 15. O efeito multiplicador não para por aí. Cada real gasto pelo programa resulta 110 incremento de 1,78 real no PIB. “Ao garantir uma renda mínima aos mais pobres, há um aumento do consumo que faz a economia prosperar”, afirma economista Marcelo Neri, presidente do IPEA.
Passados dez anos do lançamento do programa, os ganhos sociais também são incontestáveis. Entre 2002 e 2012, a extrema pobreza retrocedeu 69,2%. Mais de 22 milhões de brasileiros abandonaram a miséria. “O Bolsa Família, isoladamente, foi responsável por 28% dessa queda. E também por 12% da redução da desigualdade social”, diz Neri.
Um a um, os mitos em torno do Bolsa Família foram derrubados, avalia a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello. “Muitos diziam que as famílias pobres deixariam de trabalhar para vivera custa do governo. E mentira, 74% dos beneficiários adultos trabalham”, afirma a ministra. “A acusação mais cruel era a de que as mulheres teriam mais filhos para receber um benefício maior. Nos últimos dez anos, a taxa de natalidade caiu cerca de 20% em todo o Brasil. Entre as cadastradas no Bolsa Família, a queda foi bem maior: 30%, Com mais acesso à informação eà saúde, elas se preocupam mais com métodos contraceptivos, ter famílias menores. São pobres, não oportunistas.”

Em 2012, um estudo publicado pela revista científica Lancet, do Reino Unido, revelou os efeitos do programa na redução da mortalidade infantil. Ao comparar os municípios com menor ou maior cobertura do Bolsa Família, restou comprovado que os óbitos reduziram 17% a mais nesses últimos. Coordenado por Maurício Barreto, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, o trabalho avalia a evolução dos indicadores de saúde entre 2004e 2009. “Quando analisamos a mortalidade de crianças por causas relacionadas à pobreza, o impacto é ainda maior. As mortes por diarreia caíram 46% e os óbitos por desnutrição, 58%.”
O efeito decorre da segurança alimentar. mas também das condicional idades impostas pelo programa. Para receber o benefício, é preciso manter o calendário de vacinação das crianças em dia. As gestantes são obrigadas a fazer o pré-natal em hospitais da rede pública. EmMinador do Negrão, onde a desnutrição e a mortalidade infantil sempre tiveram taxas epidê-miças, nenhu ma criança morreu por três anos consecutivos. “Não há como negar a melhora das condições de saúde da população”, afirma Nielly Ferro, enfermeira de um posto de saúde na zona rural.

Os impactos na economia local são perceptíveis. Até oinício do ano, 290 mil beneficiários tornaram-se empreendedores. É o caso de Cícera Sofia. Após sete anus de benefícios, ela fez questão de cortar o cartão magnético usado para sacar o benefício com uma tesoura. “Não queria cair em tentação de gastar um dinheiro que não tenho mais direito”, explica, calmamente, ao repetir o gesto dramático no balcão da loja. Ao prosperar com a venda de bijuterias de porta em porta, ela decidiu desligar-se do Bolsa Família. “O programa injetou vida na economia. 
A maioria dos meus clientes é de beneficiários”, afirma. Dois de seus filhos cursam u ensino superior.
As relações trabalhistas também sofreram profundas mudanças. Segundo uma pesquisa do International Food Folicy Research Institute, o programa contribuiu para a diminuição do trabalho infantil em todos os grupos etários entre 2005 e2009. No campo, os frutos são colhidos até por adultos. “Antes, os agricultores eram praticamente escravos nas fazendas, o patrão pagava o que queria”, afirma o secretário municipal de Assistência Social, Gileno Calixto. “Agora, os lavradores exigem melhores salários. Não por acaso, os fazendeiros odeiam o Bolsa Família.”
Cleiton Pereira frequenta a faculdade
Órfão de pai antes de completar 1 ano, Cleiton Pe-reira encarou uma vida de privações. Sem perspectiva de trabalho na região, a mãe migrou para São Paulo, onde trabalhou como doméstica. 0 pouco que ganhava mandava para os filhos, sob os cuidados dos avos, A sorte mudou em 2003, quando a família foi cadastrada no programa federal. “O valor do benefício, para quem não tem nada, é uma fortuna”, avalia Pereira, que se desligou em 20.10. Aos 28 anos, ele é gestor do programa no município e frequenta a Faculdade de História.
0 governo sempre teve a expectativa de reduzir a evasão escolar com o programa, mas surpreendeu-se com as pesquisas que revelam a melhora 110 desempenho dos alunos. Dois anos atrás, 7,2% dos estudantes cadastrados abandonaram os estudos, taxa bem inferior à média nacional: 10,8%. No Nordeste, uma das regiões mais beneficiadas, a taxa de aprovação no ensino médio também é superior (82,7% ante 74,3%).

Desde 2009, a comprovação da frequência escolaré condição obrigatória para a família receber o benefício. “O Boi sa afeta diretamente fatores que interferem no aprendizado, como a frequência e a possibilidade de envolvimento com o trabalho infantil”, explica Armando Simões, autor de uma pesquisa desenvolvida na Universidade de Sussex em 2012. Ele conclui que o tempo de participação no programa, associado ao valor per capita pago às famílias, contribui para a melhora dos resultados escolares.
Ao garantir autonomia financeira às mulheres, o programa também permitiu a muitas se livrarem de casamentos difíceis, com maridos alcoólatras ou violentos. O fenômeno foi bem captado nos depoimentos coletados pela socióloga Walquíria Leão Rego, que entrevistou centenas de beneficiárias em regiões pobres. A pesquisa culminou no livro Vozes do Bolsa Família, escrito em parceria com Alessandro Pinzani, da Universidade Federal de Santa Catarina. “Ao possibilitar o planejamento sobre a própria vida, as mulheres ganharam mais autonomia”, explica.
Segundo a socióloga, a maioria dos países desenvolvidos tem programas de transferência de renda. Na Suécia, por exemplo, a política começou nos anos 1930. Nos EUA, a primeira versão da Assistência Nutricional Suplementar, conhecido popularmente como Food Stamp, é de 1939. Atualmente, 47 milhões de norte-americanos recebem o auxílio. “As políticas sociais sempre serão criticadas, sobret udo pela grande mídia, independentemente do partido que colocá-las em prática”, opina.
Em setembro, o economista Paul Krugman viu-se obrigado a defender nas páginas do diário The New York Times o FoodStamp, alvo de uma ferrenha campanha contra ria liderada pelos conservadores. O deputado republica no Paul Ryan, presidente do Comitê Orçamentário da Câmara, chegou a declarar que uma assistência alimentar “convence pessoas capazes de trabalhar a levarem vidas de dependência ecomplacência”, E uma versão ianque do argumento tupiniquim do “bolsa-vagabundo”.
Nobel de Economia, Krugman não teve dificuldade para rebater o argu mento falacioso, Lembrou que quase dois terços dos beneficiários são idosos, crianças ou deficientes. Além disso, várias pesquisas concluem que as crianças beneficiadas nos anos 1960 e 1970 tornaram-se adultos mais produtivos e saudáveis do que àqueles excluídos do programa. “Até mesmo alguns dos sabichões conservadores sabem que a guerra contra a assistência alimentar prejudicará o Partido Republicano, porque faz com que os republicanos pareçam mesquinhos e determinados a promover uma guerra de classes.”
No interior de Alagoas, o retrato da formatura no ensino fundamental de Ana Carla Justino, de 15 anos, ocupa local de destaque na parede da sala. Filha de agricultores, seus pais tiveram de abandonar os estudos para trabalhar na roça. Os 170 reais do benefício ajudaram a família a atravessar a pior fase da seca, a pagar o tratamento de asma de u m dos irmãos e a mantê-la na escola. “Já pensou a filha de um agricultor ser alguém importante?”, pergunta, orgulhoso, Carlos. Soares da Silva, pai da adolescente que pretende ser médica,
*Colaborou Rodrigo Martins
Revista Carta Capital





Nenhum comentário:

Postar um comentário