O maior legado de Lula não é só o Bolsa Família. O principal mérito de seu governo foi montar uma estratégia macroeconômica articulada com o desenvolvimento social e ancorada no crescimento, na geração de emprego e renda, na valorização do salário mínimo, no aumento do gasto social, no incentivo às políticas universais.
A pobreza declinou sensivelmente nos últimos nove anos. Mais de 28 milhões de brasileiros suplantaram a “linha de pobreza” monetária definida pelo Banco Mundial (US$ 2 por dia). O contingente de pobres caiu de 36% para 20% da população total. A desigualdade social também refluiu: a renda domiciliar per capitados estratos mais pobres cresceu 50%, ante 12% auferidos pelos mais ricos.
O que justifica esse progresso? Muitos atribuem apenas ao programa Bolsa Família. Essa explicação minimalista é endossada pelas organizações internacionais.
Na divulgação do relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) foi ressaltado que “jamais se viu a pobreza e a desigualdade caírem tão depressa” como no Brasil. Esse avanço foi motivado pelo crescimento e pelo Bolsa Família, “um exemplo de política social copiado no mundo inteiro, inclusive em países mais desenvolvidos”.1 A contribuição do salário mínimo e da Seguridade Social foi nula. Mais grave, o relatório prega nova reforma ortodoxa na Previdência e minimizam o papel do crescimento e seus reflexos no mundo do trabalho. Esse reducionismo não é fruto de desconhecimento: o buraco é mais embaixo.
Nova embalagem do Estado mínimo
De forma dissimulada, observa-se, em escala global, o desenvolvimento de uma astuta estratégia de marketing visando transformar o programa brasileiro numa “solução” milagrosa para erradicar a pobreza no mundo. Furtivamente, procuram elevá-lo ao status de “case” internacional de sucesso a ser difundido em todo o mundo. Usam-no como a nova embalagem do fracassado Estado mínimo.
A lógica aparente é impor a focalização como um teto para todos os países subdesenvolvidos, cujos sistemas de proteção social foram destruídos pelo tsunami neoliberal. Mas também pretendem utilizá-la como moeda de troca para a iminente reforma dos regimes de welfare state europeus – medida de austeridade para fazer frente à crise fiscal.
O objetivo pode não ser garantir padrões mínimos de seguridade, mas assegurar padrões máximos de gasto social. Programas dessa natureza são relativamente baratos como porcentagem do PIB.
Estão trocando a embalagem, mas preservando o conteúdo. De forma sub-reptícia, ressuscitam a famigerada proposta dos três pilares elaborada pelo Banco Mundial nos anos 1990.2 O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) passou a denominar propostas dessa natureza de “universalização básica”.3 Não seria melhor chamar de “focalização para todos”?
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) elaborou a proposta do Piso de Proteção Social Básica.4 Em síntese, defende que todos os países do mundo deveriam oferecer um conjunto de serviços sociais para pobres, desempregados, idosos, viúvos, órfãos e inválidos. Também deveriam incluir o pagamento de um benefício monetário para famílias com crianças, “a exemplo do que o governo brasileiro garante com o pagamento do Bolsa Família”.
A proposta inspira-se nos programas focalizados adotados no México, Chile, Namíbia e Nepal, entre outros. Mas a grande estrela global, sem dúvida, é o “case” brasileiro, “considerado o maior programa de transferência social em escala mundial que beneficia 46 milhões de pessoas com um custo que equivale aproximadamente a 0,4% do PIB”.
A despeito de ser um retrocesso em relação à Convenção 102 da OIT, datada de 1953, o Piso de Proteção Social Básica foi aprovado pela ONU e recebeu apoio entusiástico de uma multiplicidade de organismos. Formou-se uma “coalizão global” favorável que reúne diversos órgãos da ONU (FAO, Pnud, Unesco, Unicef, entre inúmeros outros), o FMI, o Banco Mundial e o BID. Com a crise, os países do G20 também endossam a iniciativa, vista como “importante estabilizador econômico”.
No Brasil, o quadro não é diferente. Setores da oposição lutam incansavelmente pela paternidade do filho pródigo. Setores do governo também reproduzem a visão minimalista do sucesso recente, sobretudo no cenário internacional.
Incompreensão e reducionismo
Essas visões demonstram incompreensão acerca das características do complexo sistema de proteção social brasileiro consagrado em 1988. Além disso, apequenam o legado do ex-presidente Lula, que foi muito além do meritório programa Bolsa Família.
Seu maior legado foi montar uma estratégia macroeconômica articulada com o desenvolvimento social e ancorada no crescimento econômico, na geração de emprego e renda, na valorização do salário mínimo, no aumento do gasto social, no incentivo às políticas universais e no avanço das políticas voltadas para o combate à pobreza, com destaque para o Bolsa Família.
Mais que isso, superamos etapa estéril em que “focalização” (Estado mínimo) e “universalização” (Estado de bem-estar) eram vistas como paradigmas excludentes. Passamos a considerá-las estratégias complementares e convergentes. O programa Brasil sem Miséria, recém-lançado pelo governo federal, caminha nesse sentido.
O que explica o desenvolvimento social recente?
A questão social foi eleita como um dos eixos do desenvolvimento. Conjugaram-se, com êxito, estabilidade econômica, crescimento, distribuição de renda e inclusão social. Essa estratégia está ancorada em seis núcleos sumarizados a seguir.
1. Crescimento econômico
O crescimento é a mais efetiva das políticas sociais. É ele que explica a redução da pobreza na China de 57% para 14% entre 1980 e 2005. Vistos como “estratégia única”, programas focalizados são limitados. Caso contrário, a pobreza no México não alcançaria metade de sua população.
O PIB do Brasil, após crescer mais de 7% ao ano (1950-1980), caiu para a medíocre taxa média anual de 2,1% (1981-2003). Estudos recentes da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) mostram uma inquestionável correlação entre crescimento do PIB per capita e redução da incidência da pobreza em dezenove países da América Latina e Caribe. A renda per capita brasileira praticamente ficou estagnada entre 1980 e 2003 – enquanto setuplicou na China e dobrou na Índia.
Após 25 anos, a partir de 2006 o crescimento econômico voltou a ter destaque na agenda. Uma sinalização foi o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), visando à coordenação de investimentos públicos e privados na infraestrutura econômica e social.
Com a crise internacional, essa postura foi reforçada, e medidas anticíclicas foram adotadas. Setores estratégicos tiveram redução de impostos. A meta de superávit primário foi reduzida. A política monetária foi afrouxada pela redução dos juros e dos compulsórios. Os bancos públicos ampliaram a oferta de crédito (que praticamente dobrou em relação ao PIB). Papel central foi desempenhado pelo BNDES, cujos desembolsos quase triplicaram na segunda metade da década passada. Em parte, o crédito pessoal foi direcionado para pequenos empreendedores urbanos, para a agricultura familiar e para os funcionários públicos e aposentados, realimentando a cadeia do consumo e impulsionando o mercado interno.
O PIB cresceu a taxas médias anuais de 5% (o dobro da média das décadas anteriores). O PIB per capita quase triplicou entre 2002 e 2010 (de US$ 2.870 para US$ 8.217). A arrecadação cresceu, e as contas públicas melhoraram (a relação dívida líquida/PIB declinou de 60% para 40%).
O crescimento deflagrou uma espiral virtuosa de geração de emprego e renda que realimenta o consumo, a produção e os investimentos.
2. Geração de emprego e renda
O crescimento impulsionou o mundo do trabalho. A taxa de desemprego caiu pela metade. Mais de 12 milhões de empregos formais foram criados. A renda domiciliar per capitacresceu com vigor. O rendimento médio real dos trabalhadores e o consumo das famílias voltaram a crescer, após longos períodos de encolhimento.
3. Aumento do gasto social
O crescimento ampliou as fontes de financiamento da política social, abrindo espaços para o aumento do gasto social federal, que duplicou, em termos reais, entre 2002 e 2009; em proporção do PIB, passou de 13% para 16%; o gasto per capita subiu 60%.
4. Valorização do salário mínimo
A estratégia também privilegiou a valorização do salário mínimo, que experimentou aumento real de mais de 80% entre 2003 e 2011. Em São Paulo, o custo da cesta básica como proporção do salário mínimo caiu pela metade (1995-2010). Muitos “iluminados” diziam que o aumento do salário mínimo quebraria a Previdência Social. Ocorreu o contrário.
5. Políticas universais
A experiência brasileira de proteção social é singular. Nos últimos anos da década de 1970 até 1988, caminhamos na contramão do mundo. Seguimos a rota inversa do neoliberalismo. Fomos salvos pelo movimento político. O notável movimento social que lutava pela redemocratização do país construiu uma agenda de mudanças que visava, em última instância, acertar contas com a ditadura militar. Naquele momento, não havia solo fértil para germinar a investida neoliberal.
A rota forjada pelo movimento social tinha como destino a Assembleia Nacional Constituinte. Após uma árdua marcha, a Constituição da República aprovada em 1988 restabeleceu a democracia e consagrou as bases de um sistema de proteção social inspirado no Estado de bem-estar social europeu, ancorado nos princípios da universalidade, da seguridade e da cidadania.
É verdade que, entre 1990 e 2005, os ventos liberalizantes também sopraram por aqui. Passada essa longa fase de tensões, a inflexão ocorrida na política econômica a partir de 2006 começou por aplicar o pilar inconcluso do projeto de reformas desenhado pelas forças que lutavam contra a ditadura militar, apoiado em três núcleos centrais:5 a restauração do Estado democrático de direito; a construção de um sistema de proteção social, inspirado nos princípios do Estado de bem-estar social; e a concepção de uma nova estratégia macroeconômica, direcionada para o crescimento econômico com distribuição de renda.
A Constituição de 1988 consagrou os dois primeiros. Todavia, a sociedade foi incapaz de viabilizar o terceiro. Com o crescimento, a partir de 2006, começamos a construí-lo.
Não pode haver dúvidas sobre o papel desempenhado pela Seguridade Social no desenvolvimento social recente. Sem ela, 70% dos idosos estariam abaixo da linha de pobreza – ante os atuais 10%.
Observe-se que em meados de 2011 a Seguridade Social concedeu 34,8 milhões de benefícios diretos, assim distribuídos: Previdência Urbana (16,6 milhões); Previdência Rural (8,4 milhões); proteção aos idosos pobres e pessoas com deficiência (3,8 milhões); e Seguro-Desemprego (6 milhões). O caráter distributivo desses programas fica mais evidente se também contabilizarmos os seus beneficiários indiretos. Segundo o IBGE, para cada beneficiário direto há dois indiretos, membros da família. Dessa forma, a Seguridade Social favorece, direta e indiretamente, cerca de 104 milhões de pessoas, a metade da população do país.
Mais de dois terços desses benefícios equivalem ao piso do salário mínimo. A notável elevação real do mínimo ampliou a renda dessas famílias – o que também explica o motor do crescimento baseado no consumo interno.
6. Políticas focalizadas de combate à pobreza
Finalmente, o sexto núcleo da estratégia de desenvolvimento social foi a expansão dos programas de combate à pobreza, com destaque para o Bolsa Família. É verdade que milhões de pessoas pobres saíram dessa condição pela simples fuga para empregos e salários mais elevados, aproveitando as oportunidades abertas pelo mercado de trabalho.
A redução da pobreza também foi fruto de uma gama enorme de outros programas sociais, com destaque para o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).
Grande parte da pobreza brasileira concentra-se na área rural. Na última década, o PIB da agricultura cresceu mais que o PIB nacional. A queda do índice Gini no campo foi maior que no meio urbano. A chamada “nova classe média” no campo passou de 21% para 35% da população rural. Em dez anos, a migração rural caiu pela metade. No ranking do índice de “felicidade futura” medido pelo Gallup World Poll (132 países), o Brasil rural é o terceiro colocado. Passamos a Dinamarca, que era recordista mundial.
Em parte, essa melhora é explicada pelas oportunidades abertas no mercado de trabalho, pelo Bolsa Família e demais programas sociais (Previdência Rural, Benefício de Prestação Continuada, Pronaf, entre outros).
A lição brasileira
A partir de 2006, caminhamos no sentido de construir uma nova estratégia de desenvolvimento social articulada com a política econômica. Essa é a lição que muitos brasileiros e o mundo deveriam aprender – e que expressa o verdadeiro legado de Lula.
A agenda brasileira para o futuro, definitivamente, não é aquela que os organismos internacionais querem impor ao mundo. Nosso desafio central é consolidar as conquistas de 1988, bem como os avanços e convergências obtidos recentemente. Isso depende de uma duríssima corrida de superação de obstáculos. Um deles é a redução das despesas financeiras, o maior item do gasto público. Somos líderes mundiais em taxa real de juros e vice-líderes no ranking de maiores pagadores de juros em proporção do PIB. Se Macunaíma vivesse hoje, certamente diria: “Ou o Brasil acaba com os juros, ou os juros acabam com o Brasil!”.
Eduardo Fagnani é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho).
1 André Barrocal, “OCDE: Brasil tem avanço extraordinário e redução da pobreza inédita”, Carta Maior, 26 out. 2011.
2 Ver Banco Mundial, Envejecimiento sin crisis: políticas para la protección de los ancianos y la promoción del crecimiento, Oxford University Press, 1994; e World Bank, Investing in health [Investindo em saúde], Oxford University Press, 1993.
3 Banco Interamericano de Desenvolvimento, “Universalismo básico: una nueva política social para América Latina”, Washington, 2006.
4 M. Cichon, C. Behrendt e V. Wodsak, La iniciativa del Piso de Protección Social de las Naciones Unidas, Alemanha, Friedrich-Ebert-Stiftung, 2011.
5 “Esperança e mudança: uma proposta de governo para o Brasil”, Revista do PMDB, ano II, n.4, Rio de Janeiro, Fundação Pedroso Horta, 1982.
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