segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O VAREIRO


O TRANSPORTE de cargas, no Parnaíba, é feito em barcas de grande largura e pequena profundidade. Embarcações para os rios de pouca água, chamam estas a atenção do viajante para a solução que os armadores fluviais encontram, com elas, para o seu problema comercial. De ferro ou de madeira, fabricadas nos estaleiros ingleses ou saídas das oficinas caboclas, nas cidades ribeirinhas, dão elas a ideia de icebergs escu­ros, descendo, ou subindo, a correnteza morena. Para compensar a falta de espaço no bojo raso, exageram os proprietários o seu carregamento no sentido da altura. As bordas da barca não saem d’água senão uns quatro dedos, no centro, e apenas uns trinta centímetros, na popa e na proa. Mas a montanha de couros, de sacas de algodão, de cera de carnaúba e de outros produtos da região eleva-se quatro, cinco, às vezes seis metros, acima do nível do rio. A embarcação desaparece quase, dando a impressão de que a sua carga viaja sozinha, rumo ao litoral. E o mesmo acontece quando sobe, levando os produtos da indústria civilizada para o conforto precário dos homens do alto sertão.
O que caracteriza esse gênero de transporte primitivo é, todavia, a força que o aciona. Força humana. Braço de caboclo. Músculo de negro. Energia de homem branco embrutecido pela pobreza. Mas é preciso con­templar estes heróis obscuros e anônimos na sua faina, para admirá-los. De um lado e de outro da barca, orlando a montanha de carga, estende-se um pequeno caminho de dois palmos de largura, e que vai do convés da proa ao da popa. É o caminho do vareiro. É a passagem dos tripulantes de bronze ou de ônix, que, com a robustez hercúlea do seu peito, levam aquelas toneladas de carga, no valor de centenas de contos, de Floriano a Parnaíba, rio abaixo, ou de Parnaíba a Floriano, rio acima, através centenas de léguas, vencidas penosamente.
Seminus, tendo apenas, entre a cintura e a coxa, um calção de zuarte ou de estopa, molambo que os mendigos recusariam, resto de uma calça ou de um saco, a musculatura à mostra, o vareiro é o pária soturno e heroi­co daquelas paragens. Dante não imaginou, jamais, para os seus réprobos, um círculo do Inferno em que se registasse a pena daquele suplício calado. Três, quatro, de cada lado da barca, munido cada um de uma vara que mede seis ou sete metros, e tão sólida que o seu peso é, já, suficiente carga para um homem, os vareiros vão, lentamente, passo a passo, um distante do outro, até à tolda da proa, e firmam a vara no fundo do rio. Fixam, em seguida, a parte superior, no músculo do peito, acolchoado de carne calejada pela constância do exercício. E, firmando-se aí, vergados para a frente, apoiados na vara, cuja maior parte mergulha na água, começam a caminhar vagarosamente, o passo medido, pela borda da barca, no rumo da popa. Eles caminham para trás, como quem volta para o lugar de onde veio. A embarcação caminha para a frente, avançando sempre. Cada passo que eles dão, regressando, a barca, na ascensão pesada, rio acima, conquista outro, para diante. Chegados à popa, retiram da profundidade a vara em que se apoiavam. Dirigem-se, de novo, para a proa. E, de novo, repetem a caminhada vagarosa e monótona, fazendo sempre o mesmo passo, na­queles quinze ou vinte metros do convés estreito. Ea embarcação sobe o Parnaíba, de modo quase imperceptível. A água, na sua viagem para o oceano, chia docemente na proa de madeira ou de ferro, que a corta com preguiça. Cada palmo de caminho fluvial vencido custa o esforço de seis ou oito peitos musculosos e nus, em que se fixam as varas, entrando pela carne. 
O trabalho do vareiro não pode ser mais triste, mais monótono. As tábuas, ou o ferro, em que pisa, são sempre os mesmos. E sempre o mesmo caminho que faz, movendo os seus passos vagarosos e medidos. A margem do rio modifica-se, é verdade. Mas, além de ser o rio sempre o mesmo, para vencer um estirão são necessárias duas horas. Ele sobe, assim, o Parnaíba, caminhando para trás. O rio todo, de Amarração ao último ponto navegável, quatrocentos quilômetros acima, é medido, desse modo, dezenas de vezes, pelo seu passo. É esse, no mundo, o seu castigo. Foi essa, no berço, por ter nascido nas proximidades do rio, a sua conde¬nação.
E essa faina não é apenas diurna. Sendo longa a viagem, que demora às vezes um mês, é preciso empurrar a embarcação dia e noite. E, assim, o vareiro lá está no seu posto, fazendo o seu pequeno caminho sobre o estreito passadiço de tábuas ou de ferro, à chuva e ao sol, sob a tempesta¬de, tiritando de frio ou sob a canícula, o dorso estalando às chicotadas de fogo do céu. O dia morre. Surgem as estrelas. E o vareiro, curvado sobre a vara cravada no rio, marcha, vagaroso, fazendo, solitário, viagens de cen¬tenas de léguas, naquele caminho que não mede uma centena de passos. Às vezes, canta baixinho, em toada triste, uma cantiga saudosa e dorida, que trouxe do seu povoado ribeirinho. Quase sempre, porém, a sua can¬ção é apenas um gemido, um lamento longo, a expressão de um esforço de músculos. Atira a vara ao rio. Finca-a na areia. Firma o peito na outra extremidade. E grita, soturno e magoado:
– U-u-u-u-êêêôi...
E continua a caminhar em silêncio, no rumo da popa.
Na descida, com as águas baixas, o trabalho é quase o mesmo. A água não tem força para carregar a barca, e é preciso que o vareiro a auxi¬lie, pelo canal estreito e traiçoeiro. No inverno, porém, é menor o trabalho, mas é maior o perigo. A água, impetuosa e vermelha, trazendo na viagem o barro de todas as ribanceiras lambidas e desmoronadas na passagem, tem a velocidade das torrentes. Carregada pelo rio, a barca se precipita, como se quisesse chegar mais depressa que ele. O vareiro não tem o traba¬lho de empurrá-la, de impeli-la; mas tem a defendê-la. Na velocidade com que desce os estirões, a embarcação vem, nas curvas do rio, de encontro às margens. E, então, é a vez do vareiro impedir o choque: lança a vara de encontro à ribanceira, ou ao fundo da água. Avara curva-se, à correnteza; às vezes, porém, o ergue no ar, suspende-o, atirando-o, como um boneco esfarrapado e sujo, sobre a montanha de carga. O vareiro vomita sangue. Faz mais uma ou duas viagens. Emagrece. A febre, que o visitava cada ano, torna-se a sua companheira de cada dia. Desembarca, para curar-se. Toma um ou dois remédios caseiros. Sustenta-se com as esmolas que lhe dão, no povoado em que agoniza. E morre, indo fecundar com a sua carne mortificada, ou com os seus ossos, as ribanceiras do rio, que as águas avolumadas cobrirão nas enchentes do próximo inverno.
Assim vive, preso à sua vara, empurrando a sua barca rio acima, ou defendendo-a, rio abaixo, o vareiro do Parnaíba. E assim morre. Assim vivo eu, preso à minha pena. E assim morrerei.
– U-u-u-u-ôôôôi...



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