terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Quando Cabrinha desligava o motor da luz


Quando Cabrinha desligava o motor da luz
A lembrança mais nítida de minha infância no sertão é que os dias eram extremamente luminosos e as noites recebiam uma espessa cobertura de breu. O sol tinha uma luminosidade ofuscante num céu cujo azul pálido, desmaiado, quase transparente, nunca vi reproduzido em parte nenhuma do mundo. Era mais fácil conviver com o calor abrasador e a secura do ar que com aquele brilho humilhante. De noite, quando eu era menino, a cidade ainda não tinha eletricidade de hidrelétrica, a luz de Paulo Afonso, como se dizia. Foi uma grande conquista, talvez a maior de todas, a ventura de girar o interruptor e ver a lâmpada acender, mas ainda mais ter uma geladeira, uma vitrola ou um simples rádio elétrico funcionando a qualquer hora. Até então, tínhamos de nos contentar com o “motor da luz” – um gerador a Diesel que o maquinista Cabrinha acionava às 18 horas e desligava às21. O desligamento era precedido de três sinais: um apagão rápido, depois dois, três, antes de, enfim, vir a treva.
José de Anchieta Pinto, com o motorista Zé Campina, exibindo orgulhoso o “jandaia”, vulgo “gemecê”, caminhão Chevrolet 1958
Meu pai, Anchieta Pinto, era caminhoneiro e me lembro bem do orgulho com que se exibia ao se deixar fotografar na frente de um Chevrolet (dizia-se “gemecê”) , que ele chamava de Jandaia. Viajava muito para o “Sul” – Rio e São Paulo – e mamãe, Mundica Ferreira Pinto, ficava sozinha conosco: éramos quatro, depois cinco, depois seis, sete, afinal. Assim que Cabrinha acionava o motor, o pároco, o cônego Antônio Anacleto, também ligava o alto-falante da matriz de Jesus, Maria, José. A característica era a Ave Maria, de Gounod. Em seguida, com sua voz característica e gozada, o vigário recitava um trecho em homenagem à Virgem Maria. Afinal, era a Hora do Ângelus. Mas era também a hora do acerto de contas dele com a comunidade. Era algo mais ou menos assim: “Seis horas, hora do Ângelus, hora da Ave Maria, hora de todos nós rezarmos contritos a Deus e pedirmos a intercessão da mãe de Jesus Cristo, Nosso Senhor, para nos redimir de nossos pecados. Hora de você, Cabrinha, cabra safado, vir consertar a difusora da igreja, pois eu já lhe paguei pelo serviço que você não fez”
Na verdade, Cabrinha era apenas o maquinista: ligava e desligava o motor. Quem cuidava dele para evitar os blecautes, dos quais, confesso, não me lembro, era o gênio local da mecânica, Zéu Fernandes, um mago dos motores e proprietário do único automóvel do qual me lembro bem àquela época: a “fobica” de Zéu. Nele fiz meus primeiros passeios de carro na estrada poeirenta e esburacada ligando a Fazenda Rio do Peixe, onde nasci, e a cidadezinha de Belém do Arrojado, vulgo Uiraúna, a légua e meia, nove quilômetros de distância, como minha mãe registrou no “Álbum do Bebê”.
Zéu Fernandes, o mago da mecânica e dono do primeiro automóvel de Uiraúna, a “fobica”, posa ao lado do motor da luz, que o maquinista Cabrinha acionava diariamente em Uiraúna
Na primeira infância, já morando na “rua”, como se dizia, quando o eletricista cobrado pelo padre desligava a luz e a treva descia, com meu pai viajando, íamos tomar a fresca na calçada da Rua Nova e mamãe, que tinha estudado na Escola Normal de Cajazeiras, dizia de cor versos de Castro Alves. Até hoje posso citar de cor trechos do Navio Negreiro: “existe um povo que a bandeira empresta pra cobrir tanta infâmia e cobardia e deixa-a transformar-se nesta festa em manto impuro de bacante fria. Meu Deus, meu Deus! Mas que bandeira é esta que impudente na gávea tripudia? Auriverde pendão de minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança, estandarte que a luz do sol encerra e as promessas divinas da esperança, tu, que após a guerra foste hasteada dos heróis na lança, antes te houvessem roto na batalha que servires a um povo de mortalha”. Lindo, não? E que ritmo maravilhoso! Atribuo meu ouvido de tuberculoso para a palavra a essas noites escuras em que a brisa não vinha, mas o calor era refrescado pelos alíseos do mar da Bahia nos ritmos dos versos de Antônio Frederico, que morreu tão moço, coitados de nós, que perdemos tanta poesia! Considero “que a brisa do Brasil beija e balança” o mais lindo verso da língua portuguesa, que me perdoem Camões e Pessoa! E até hoje acho que o baiano foi o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Lembro-me também que mamãe dizia O livro e a América – “criado pelas grandezas, pra crescer, criar subir” etc. Não há espaço para citar o poema todo.Também teria de recorrer ao livro: não me lembro dele como do Navio Negreiro. Mas me recordo ainda bem que achava muito engraçado quando ela recitava: “lá brada César morrendo”. E a cena trágica do assassínio do imperador romano lembrada pelo poeta era substituída na minha memória infantil pelo louco Labrada, que era fanático por automóveis e andava a pé como se estivesse dirigindo um, reproduzindo com a boca, a língua e a garganta os ruídos do motor e torcendo os braços como se dirigisse ou passasse marcha. Labrada era o contínuo do cabaré de Cirilo Félix, que tocava na sua casa de putas um fole de oito baixos comandando um conjunto tosco intitulado Cirilo Félix e seus cabras da peste, uma evidente homenagem ao maior sanfoneiro de oito baixos da época, Abdias, líder de Abdias e seus cabras da peste. Sabia que uma puta se chamava Escurinha e era negra, claro. Mas esse não era um assunto para crianças.
Os sete filhos de Mundica Ferreira Pinto: José Nairton, José Noaldo, José Neudson, Nicéa Mary, Mundica Ferreira Pinto, José Nilton, José de Anchieta Filho e José Nêumanne
Ainda era um menino bobo quando papai resolveu aventurar-se nos negócios e abriu uma sorveteria num ponto na Rua do Comércio, defronte ao mercado. Era uma operação comercial obviamente ruinosa, pois papai nunca tinha feito um picolé na vida e não havia eletricidade permanente. Ele teve de importar um sorveteiro de Cajazeiras, Ezequias, e montar um conjunto de gerador e dínamo a Diesel para manter a consistência e a temperatura dos sorvetes. Meu tio Raimundo, médico formado em Recife, sugeriu o nome em homenagem a um lugar muito pouco frio, Alabama, o Estado sulista americano, e o nome pegou: Sorveteria Alabama. Mais do que dos sorvetes de Ezequias, que eram bons, mas não havia uma variação muito grande de sabores, talvez pela escassez de oferta de matéria-prima nas feiras de domingo, lembro-me da “radiola”, uma vitrola enorme que ficava no meio do salão. Miltinho cantava “cara de palhaço, pinta de palhaço” e eu achava engraçadíssimo porque “pinta”, para nós, era o órgão genital masculino, vulgo pênis. Havia também um long playing que o magnífico pianista e intérprete americano Nat King Cole gravou para o público latino-americano, cantando em espanhol e até em português. É um disco maravilhoso e desde sempre aquele negro simpático com chapeuzinho é meu cantor favorito.
Campina Grande, Paraíba. Foto de Ubiracy Vieira Veloso
Já estava em plena adolescência quando foi adicionado ao repertório da sorveteria (que, na era de Paulo Afonso, sob a direção de Nozinho, passou a se chamar Sorvelanches Canaã) o LP O inimitável, de Roberto Carlos – “de que vale tudo isso se você não está aqui?” Mas aí o negócio de sorvetes de meu pai já tinha derretido e eu me mudado para Campina Grande para estudar no Instituto Redentorista Santos Anjos. A inocência da infância ficou boiando no ar na companhia das mensagens sonoras que Peta lia antes dos sucessos musicais que tocava até o motor da luz ser desligado.


Reportagem da TV Tambaú feita pelo jornalista José Vieira Neto sobre a vida do Jornalista e escritor José Nêumanne Pinto.




sábado, 20 de fevereiro de 2016

o merendão se aproxima do primeiro escalão

Mais integrantes de gabinetes próximos ao do governador de São Paulo são citados no esquema de desvios da alimentação escolar
Voorwald e Jardim (à direita) se unvem a Aparecido e Nogueira. O escândalo se aproxima de Alckmin
Em 2009, lei aprovada pelo governo federal estabelecia que 30% dos recursos encaminhados aos estados e aos municípios para merenda escolar deveriam ser adquiridos diretamente da agricultura familiar, priorizando os assentamentos da reforma agrária, comunidades indígenas e quilombolas.
O objetivo claro do artigo 14 da Lei nº 11.947/09 era fazer com que os quase 3,6 bilhões de reais repassados anualmente, por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar, oferecessem merenda saudável aos alunos da rede pública e ao mesmo tempo investissem no pequeno agricultor.
Para facilitar a aquisição dos produtos, determinou-se não ser necessária a licitação e que as compras se fizessem conforme uma modalidade conhecida como chamamento público. O estado ou a prefeitura encarregada de realizar o contrato poderia analisar os preços de diversas cooperativas de agricultores e adquirir pelo menor. No mundo ideal, a legislação aceleraria o processo e ampliaria os negócios entre a administração pública e as cooperativas familiares.
No submundo da política em São Paulo, outro é o sistema. Lobistas, políticos, secretários de estado e até quem deveria zelar pelos interesses dos agricultores, os dirigentes de cooperativas, tornaram-no uma seara de corrupção e desvios de dinheiro.
Com uso de documentos falsos, fraudes em licitações, informações privilegiadas, a quadrilha fez o que bem entendeu com ajuda dos últimos escalões do governo paulista.
Detalhe: os pequenos agricultores não ganhavam com o esquema. Os representantes da cooperativa Coaf, sediada em Bebedouro, no interior de São Paulo, compravam o suco de laranja no mercado aberto e superfaturavam nos contratos com a administração pública.
CartaCapital teve acesso a novos documentos da investigação e a todas as interceptações telefônicas para averiguar que a teia de relações dos investigados com políticos ligados ao governo do estado e à cúpula do PMDB é maior do que se poderia imaginar.
As escutas mostram inclusive que a investigação teria vazado de dentro da área de inteligência da Polícia Civil e da Segurança Pública do governo, alertando os envolvidos da existência dos grampos.
Os nomes de secretários de Alckmin citados nas investigações aumentaram desde que a Operação Alba Branca foi deflagrada no fim do ano passado. Até aquele momento, já haviam sido citados Edson Aparecido, chefe da Casa Civil, e Duarte Nogueira, secretário de Logística e Transportes. Agora, verifica-se que a lista de investigados inclui também o ex-secretário de Educação Herman Voorwald e o atual secretário de Agricultura, Arnaldo Jardim. 
Nas interceptações, os merendeiros afirmam que um membro do PMDB, de nome “Michel”, teria relações próximas com um integrante da executiva estadual do partido e poderia ajudar a abrir novas portas para a cooperativa em outras localidades.
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O Michel citado seria Temer? (Foto: Antonio Cruz/ABr)
De acordo com o depoimento dos investigados, para que a entidade levasse os contratos em São Paulo e nas prefeituras era necessário um comissionamento de 10% a 20% para agentes públicos.
Entre os beneficiados estariam também o tucano Fernando Capez, presidente da Assembleia Legislativa, Baleia Rossi (PMDB) e Nelson Marquezelli (PTB), ambos deputados federais, e Luiz Carlos Gondim (SD), deputado estadual. Todos já negaram as acusações.
Para entender o funcionamento dessa rede de relações, é preciso citar um personagem-chave. Quem fazia a intermediação dos contratos com o estado e com a camarilha política era Marcel Ferreira Júlio, filho do ex-deputado Leonel Júlio, cassado em 1976 por envolvimento no “escândalo das calcinhas”. O parlamentar perdeu o mandato por comprar roupas íntimas femininas com dinheiro público.
Dentro do governo estadual, o principal contato de Ferreira Júlio era “Moita”, chefe de gabinete de Edson Aparecido até um dia antes da deflagração da operação. Ficava a cargo dele a avaliação dos contratos e seu andamento na máquina paulista.
Em uma das ligações interceptadas, Ferreira Júlio conversa com “Moita” sobre a demissão do secretário de Educação, em 4 de dezembro do ano passado, durante o protesto e ocupação das escolas contra o fechamento de unidades de ensino em São Paulo.
Moita manifesta preocupação a respeito de um aditivo no contrato de fornecimento de suco de laranja às escolas. O chefe de gabinete sugere a Ferreira Júlio protocolar a documentação com rapidez porque a notícia da demissão já está na internet. Segundo Moita, seria Voorwald quem “estaria à frente”, e com sua demissão seria necessário correr com a tramitação da papelada.
Rossi
Baleira Rossi teria revelado a existência dos grampos para os investigados (Foto: Gustavo Lima)
“Então, ele é o cara que tava na frente com isso, eu nem sei se continua, então protocola logo”, afirma Moita. Em outra ligação entre o lobista e César Augusto Bertholino, um funcionário da cooperativa, eles também conversam sobre a saída de Voorwald.
Marcel diz que está dentro do Palácio dos Bandeirantes, residência oficial do governador. “Tudo, eu tô no Palácio. O Herman caiu, secretário tá. O Geraldo mandou ele embora. Por isso ele me chamou aqui, tá indicando outro. O nosso amigo aqui tá por enquanto lá.” A investigação aponta que o “nosso amigo” seria Fernando Padula, então chefe de gabinete.
As tramoias envolvendo o roubo da merenda não eram o único objetivo da quadrilha. A Secretaria de Agricultura era de livre trânsito de Ferreira Júlio. Os investigados manifestavam interesse em passar a vender suco também para o sistema de cestas básicas distribuídas pelo estado a famílias carentes.
Em outro diálogo entre o lobista e Bertholino, Marcel fala de “estarem com o secretário de Agricultura”, Arnaldo Jardim, para colocar suco da cooperativa na cesta básica. “Dois milhões de cestas por mês, já pensou?”
As escutas mostram que Marcel tinha trânsito na pasta. Em uma das gravações diz que está chegando à secretaria para falar com “Douglas”, nome desconhecido dos investigadores. No dia 21 de dezembro de 2015, os dois falam de uma discussão dentro da secretaria. Ferreira Júlio diz que foi chamado lá e vai levar “fumo de todo lado para ficar quieto”. 
A rede de relações entre tucanos e peemedebistas, sem excluir integrantes de outros partidos, também tem destaque nas investigações. O lobista e outro funcionário da cooperativa agora conversam a respeito de um integrante da executiva do PMDB de nome Alex, encarregado de “abrir novas portas” em outros municípios. Marcel diz que Alex é muito ligado a “Michel” e vai “abrir muita coisa pra nós”.  
Durante um evento na Secretaria de Desenvolvimento, Ferreira Júlio fala de um encontro com “Baleia”, segundo as investigações, o deputado federal Baleia Rossi (PMDB), presidente estadual da legenda. Também estaria presente o integrante da executiva do partido, Alex.
No diálogo com Bertholino, eles afirmam que “Michel” não estava no local, mas a filha dele, “que é secretária” estaria. O vice-presidente Michel Temer é pai de Luciana Temer, secretária de Assistência Social da prefeitura de São Paulo.  Investigadores esclarecem não ser possível saber se o “Michel” citado nos diálogos é o vice-presidente da República, admitem, no entanto, que novas apurações precisam ser realizadas.
Capez
O MP pediu a quebra de sigilo de Capez (Foto: Rafael Arbex/Estadão Conteúdo)
A proximidade de Ferreira Júlio e de integrantes da cooperativa Coaf com autoridades de São Paulo revela que as investigações foram vazadas para os merendeiros. O inquérito revela que Cássio Chebabi, ex-presidente da cooperativa, teria sido alertado pelo deputado federal Baleia Rossi de que haveria uma investigação em andamento contra ele.
Os investigadores relatam que Chebabi foi o único não grampeado em razão do vazamento da informação. Em um dos depoimentos, um ex-funcionário da Coaf afirma ter ouvido de Chebabi que Baleia Rossi levou propina de contratos em Ribeirão Preto e Campinas.
A aproximação dos merendeiros dentro dos órgãos de investigação ia além. Em um dos grampos, Ferreira Júlio diz que eles têm “relações na Polícia” enquanto, segundo Bertholino, o lobista tem contatos na Segurança.
“Ele consegue levantá tudo. Da onde é, o que é da inteligência. É o do secretário de como é que fala? Do estado né, da segurança, da inteligência.” Um funcionário da Coaf responde: “Ah não, então beleza. Então a gente vai saber o que tá acontecendo”.
 A assessoria de imprensa da Vice-Presidência informou que “Michel Temer não permite a utilização de seu nome para fins ilícitos. O único ‘Alex’ conhecido pelo vice é integrante da Executiva do PMDB da capital, com quem tem apenas relação política formal, sem nenhuma proximidade ou intimidade”.
Uma nota do deputado Baleia Rossi sustenta: “Repudio com veemência o conteúdo dos depoimentos que citaram meu nome, inclusive são pessoas com quem não tenho qualquer relação. As afirmações contidas são inteiramente falsas, absurdas e sem qualquer fundamento. Tão fantasiosas que até o denunciante afirma que não houve entrega de nenhum recurso”.
A Secretaria de Agricultura disse que Arnaldo Jardim “não tem relação com o lobista Ferreira Júlio e que não foi identificado nenhum funcionário da pasta que tenha responsabilidade neste setor ou proximidade com o gabinete de nome Douglas”. O PSDB de São Paulo e a Secretaria de Educação informaram que não tinham os contatos do ex-secretário Herman Voorwald.
Com relação ao andamento dos inquéritos, como os políticos têm prerrogativa de foro, a investigação foi desmembrada para a Procuradoria-Geral de Justiça e da República. Resta saber até onde os órgãos estão interessados em devassar o labirinto do Merendão paulista.
*Reportagem publicada originalmente na edição 888 de CartaCapital, com o título "O merendão azeda"